A escravatura

A Igreja e a escravatura

Igreja, Estado e Escravatura: as famílias vendidas como «bens nacionais» na ilha da Reunião durante a Revolução Francesa
Autor
Nathan Elliot MARVIN

Historiador
Universidade do Arkansas em Little Rock


Igreja, Estado e Escravatura: as famílias vendidas como «bens nacionais» na ilha da Reunião durante a Revolução Francesa

Em 1789, a Assembleia nacional em Paris tomou posse dos domínios e bens da igreja católica em França, declarando-os «bens nacionais» e vendendo-os para resolver a crise financeira que estalara com a Revolução.

Na França metropolitana, os diversos organismos religiosos possuíam uma quantidade enorme de terras, edifícios, gado e não só. Nas colónias, também detinham, entre os seus bens, milhares de homens, mulheres e crianças escravizados.  Em 1793, quando foram vendidos, os bens do clero da Reunião abrangiam uma lista de 358 nomes de seres humanos registados como «bens nacionais». 

Como decorreu esse processo? Vários documentos dos Arquivos Departamentais da Reunião e dos Arquivos Nacionais do Ultramar esclarecem tudo, fornecendo igualmente indícios preciosos das experiências das vítimas, que nos permitem compreender como viveram este drama e lhe resistiram.

As «propriedades paroquiais»

Nas ilhas Mascarenhas do século XVIII, o clero compunha-se principalmente de membros da Congregação da Missão, os mais vulgarmente chamados Lazaristas, que começaram a praticar a escravatura já na década de 1710, através de contratos celebrados com a Companhia das Índias. A Companhia oferecia-lhes terreno para a sua subsistência e escravos para os explorar.  Uma vez que dependiam das paróquias e não diretamente da Congregação, esses terrenos eram oficialmente designados como «propriedades paroquiais» e destinavam-se a prover as necessidades dos párocos. Apesar disso, como únicos responsáveis pela sua gestão, os lazaristas referiam-se a esses terrenos como «as nossas propriedades» e aos escravos que aí trabalhavam como «os nossos negros».  

Ao longo do tempo, e a pedido dos missionários, a Companhia forneceu mais escravos para as propriedades ditas «paroquiais», que proliferaram e até se tornaram rentáveis, graças à cultura do café. Um recenseamento realizado em 1787 enumera 426 escravos na ilha de Bourbon (Reunião) cujos padres são indicados como seus senhores. 

Colheita de café na ilha da Reunião. E. Th.. 1855. Estampa.
Col. Museu Stella Matutina, inv. 40P1.CEV.62. Direitos reservados

Os lazaristas parecem ter seguido escrupulosamente as regras do Code noir des îles (Cartas Patentes de 1723) no que respeita à indumentária e à alimentação dos seus escravos.  Além disso, demonstravam para com eles um paternalismo opressivo assente na vigilância e na disciplina.  Os missionários procuravam limitar o contacto entre os seus escravos e o mundo exterior, pois, segundo afirmavam, temiam a corrupção «dos bons costumes», mantendo-os sempre «debaixo de olho».  Obrigavam-nos a assistir regularmente ao catecismo ministrado pelos frades lazaristas, cujo conteúdo em si visava já instaurar a obediência no sistema esclavagista. A título de exemplo, ao compor um decálogo em língua crioula datado de cerca de 1760, o padre Philippe Caulier traduziu o mandamento «Honra teu pai e tua mãe» como se segue: «Respeita e obedece ao pai e à mãe, ao senhor e à senhora, a tudo em que têm o direito de mandar em nós. Não sejas insubordinado para com eles». 

Os lazaristas diziam-se obrigados a recorrer à punição física para impor essa obediência. Alguns missionários demonstravam um certo mal-estar relativamente a esse aspeto da sua vida quotidiana. Como observou o padre Caulier: «O Salvador deixou-nos o cajado do pastor e não o chicote do carroceiro.» No entanto, não se poderia dizer que, ao fazer tal afirmação, o padre estivesse a posicionar-se contra a prática da escravatura, mas apenas constatava que carecia de recursos para responder às necessidades seculares da sua paróquia, em geral, nas mãos dos frades lazaristas. «Um frade sábio e atento em cada família», explicou ele, «instituiria a harmonia entre todos, com cada um no devido lugar».   Um desses frades, porém, não se mostrava convencido de que essa tarefa fosse ao encontro da sua vocação, tendo escrito a um confrade em França o seguinte: «Seria preciso um Doutor [teólogo] famoso para me convencer de que este ofício nos garante o céu». 

Negro açoitado. [Não identificado]. [1878]. Estampa. In Le journal de Marguerite ou les Deux années
préparatoires à la première communion, pour Melle V. Monniot, Périsse Frères, [1878], vol. 2, p. 315.
Col. Biblioteca departamental da Reunião, inv. R03445.315_1
Os missionários procuravam também regular a vida sexual dos escravos, separando os celibatários por sexo e fechando-os em «armazéns» durante a noite.   Encorajavam o casamento intramuros como o meio mais seguro para limitar as relações sexuais fora das propriedades e também para preparar os escravos recém-chegados para o sacramento do batismo. «O estatuto do casamento retém-nos e fixa-os», escreveu um missionário.  Note-se que esta política pró-casamento e natalista no seio daquilo a que os lazaristas chamavam as suas «famílias» assentava tanto em motivações religiosas como económicas, uma vez que os contratos celebrados com a Companhia das Índias os proibiam de participar ativamente no tráfico de escravos.

A «venda dos homens»

Desde os primeiros meses da Revolução Francesa que a escravatura colonial passara a ser alvo de debates acesos entre os membros da Assembleia Nacional.  Não sem controvérsias, essa legislatura decidira que, para bem do comércio francês, a escravatura seria tolerada nas colónias francesas. O decreto de 8 de maio de 1790 permitiu que as assembleias coloniais redigissem as suas próprias constituições para reger os seus assuntos internos. Um segundo decreto, datado de 28 de março desse mesmo ano, transferiu para as colónias a responsabilidade sobre as suas próprias despesas governamentais.  Considerando-se representante não oficial de Bourbon em Paris, o coronel de infantaria Pierre Riel de Beurnonville, que tinha propriedades na ilha e era casado com uma mulher crioula bourbonesa, publicou e fez circular por lá um projeto de constituição propondo a liquidação dos bens eclesiásticos ali existentes para cobrir as despesas do culto e da administração. Os seres humanos não seriam exceção: «Na venda dos bens do clero compreender-se-ão terras, edifícios, escravos, equipamento e utensílios, salvo seis cabeças de escravos por paróquia, reservadas ao serviço de cada prior». 

Em dezembro de 1790, tendo recebido o projeto de constituição de Beurnonville, a Assembleia Colonial de Bourbon preparou-se para pôr esse plano em marcha, exigindo que os párocos inventariassem todos os seus bens.  Como seria de esperar, os sacerdotes manifestaram uma viva oposição, nomeadamente, o padre Jean Lafosse da paróquia de Saint-Louis, partidário da Revolução, eleito presidente da câmara pelos seus paroquianos. Lafosse enviou uma missiva ao procurador da sua municipalidade pondo em questão a legalidade da venda dos escravos em particular, pois, escrevia, «a Constituição Francesa considera todos os homens essencialmente livres, pelo que a Assembleia nacional nunca poderá decretar a venda dos homens para liquidar uma parte das dívidas do Estado…». 

Venda de uma escrav. Madou, sc. ; Pierre Jacques Benoît, del. 1931. Litografia.
In Voyage à Surinam. Description des possessions néerlandaises dans la Guyane, Pierre Jacques Benoit. Bruxelas, Sociedade das Belas-Artes, 1839, pl. XLIII.
Col. Mediateca do Museu du Quai Branly – Jacques Chirac

Os vizinhos brancos do padre Lafosse acusaram-no publicamente de semear o caos entre os escravos do distrito, alertando-os para o plano que visava a sua venda como bens nacionais, e até de alforriar a maioria dos trabalhadores da sua paróquia logo após ter conhecimento dessa venda. Com efeito, o padre Lafosse declarara 73 escravos em Saint-Louis em 1787, mas, em 1793, por altura das vendas públicas na ilha, o comissário só identificou 47.  O que lhes terá acontecido?

Alguns escravos estavam, eles próprios, determinados a subverter o status quo colonial. Em janeiro de 1791, durante uma missa dominical, ao recusar ceder o seu lugar a um notável branco, Amant foi brutalmente agredido pela polícia e preso. O padre Lafosse apressou-se a exigir a sua libertação, redigindo uma carta onde denunciava a violência das autoridades sobre Amant. No seguimento dessas intervenções, os relatórios da polícia descreveram uma turba de escravos reunida na praça da cidade, prontos a revoltar-se. Numa carta aos seus superiores em França, o Sr. Pierre Duvergé, comissário orçamental de Bourbon de 1789 a 1794, escreveu que «o senhor padre Lafosse é acusado de pregar a liberdade aos negros. O senhor saberá o perigo que correríamos se [um escravo] determinado […] pudesse juntar-se a este novo apóstolo». . Essas ações levaram a que Lafosse fosse obrigado a demitir-se do seu cargo como presidente da câmara. 

O padre Lafosse, contudo, revelar-se-ia enganado em relação à Assembleia Nacional que, a 18 de agosto de 1791, decretou o envio de comissários civis para as Mascarenhas para aí tratar da venda dos bens «móveis e imóveis pertencentes à nação». O decreto não mencionava, em lado algum, a presença de seres humanos entre esses bens, e é bem possível que os membros do Comité das Colónias que o propuseram tenham deliberadamente ocultado esse pormenor.  Em outubro de 1792, o comissário civil Marc Antoine Pierre Tirol chegou a Bourbon. Antiesclavagista moderado, tal como o padre Lafosse, não acreditava que a Constituição Francesa permitisse a manutenção da escravatura, procedendo a reformas não só para melhorar o tratamento dos escravos, mas também para simplificar as regras relativas à alforria. Não obstante, a 6 de junho de 1793, Tirol lançou a venda em hasta pública de todos os bens eclesiásticos inventariados, explicando, numa carta dirigida ao Ministro da Marinha, o seguinte: «Uma vez que a Constituição não permite, de modo algum, a escravatura, que só pode ser tolerada nas colónias enquanto ainda for autorizada, a República não pode aí ter escravos e muito menos manifestar as suas intenções pelo exemplo».  De que «exemplo» falaria ele? Num relatório referente às vendas em hasta pública, Tirol explicou que «na venda dos bens nacionais outrora pertencentes à Igreja […] tomo todas as precauções necessárias para evitar a separação das famílias negras ».  O que acontecia na realidade era totalmente diferente.

Atores das suas próprias resistências

Entre 10 de junho e 22 de julho, dos 358 indivíduos repertoriados como «bens nacionais», os padres escolheram 28 para ficarem ao seu serviço como trabalhadores domésticos (conforme um regulamento adotado pela Assembleia Nacional, tinham o direito de reter quatro escravos à sua escolha para seu serviço pessoal, desde que não fossem qualificados «de talentos»). Por exemplo, o padre Lafosse selecionou Amant, ostensivamente, para ficar do seu lado. Além disso, outros 28 foram comprados pelos padres e mais alguns, deixados nas propriedades devido à sua idade avançada ou por invalidez. No total, 266 pessoas foram vendidas a particulares.

Apesar das promessas escritas de Tirol, muitas famílias só puderam permanecer juntas devido à intervenção dos padres e dos próprios escravos.  Em vários casos, parece que os escravos foram recrutados pelos seus antigos senhores, os missionários, que estavam, como já mencionámos, empenhados em manter a integridade dos casamentos sacramentais e em garantir a união das famílias.

Local perto do rio de Abord. Jean-Baptiste Geneviève Marcellin Bory de Saint-Vincent, del.; Fortier, sc. ; Adam, sc. Água-forte. In Voyage dans les quatre principales îles des mers d’Afrique, realizad por ordem do governo, durante os anos nove e dez da República (1801 e 1802), … : coleção de estampas. Jean-Baptiste Geneviève Marcellin Bory de Saint-Vincent. Entre 1801 e 1802. F. Buisson, 1804, pl. 40.
Col. Museu histórico de Villèle, inv. 1989.540

Em Sainte-Suzanne, por exemplo, a família do casal de septuagenários Vincent e Louise foi dividida em três lotes diferentes para ser vendida em separado. Após adquirir o casal e a filha Adélaïde, o padre Rollin comprou o filho Honoré de 30 anos, por uma soma três vezes superior ao valor estimado pelos agentes da Assembleia Colonial no inventário dos bens da paróquia em 1791 (a 2000 libras), uma vez que este tinha «o braço direito estropiado». Já o padre Gadenel fez uma oferta superior ao valor estimado pelo pequeno Jean-Louis-Vincent, de 12 anos, que tentavam vender à parte. Todas estas transações permitiram evitar a separação dos membros da família de Vincent e Louise. 

Outros casos nos arquivos demonstram que os padres agiram explicitamente em nome dos seus escravos. Numa carta datada de 19 de março de 1795, o padre Rollin diz que Justine, separada do marido, Louis, por ocasião das vendas de bens em Saint-André, «deseja ardentemente» reunir-se com ele, recentemente «posto no colégio». O padre Rollin espera também reunir Marguerite, empregada do colégio, com os pais, que se mantiveram com ele no presbitério, propondo uma troca, «se a República aceitar». 

Outros casos atestam a intervenção direta dos escravos, com ou sem o apoio dos padres, que, com o objetivo de melhorar o destino das suas famílias, agiam, na medida do possível como atores da sua própria resistência. Em Sainte-Marie, por exemplo, as atas das vendas de 1793 mencionavam François, qualificado de «Capataz, crioulo, epilético», ao lado da mulher, Henriette, igualmente crioula, e dos cinco filhos, todos juntos. Mas isso não estava previsto. De acordo com uma diretiva da Assembleia Colonial em 1791, apenas os casais casados «diante do altar» e os seus filhos com menos de sete anos deveriam ser agrupados no mesmo «lote». Pierre-Louis, de onze anos, fora registado num lote separado, mas, exatamente quando um agente municipal elaborava o inventário dos bens de Sainte-Marie em 1791, os pais dele intercederam, pedindo que o reunissem com eles. O agente, contudo, poderá muito bem só lhes ter feito a vontade porque o pequeno Pierre-Louis estava marcado como «estropiado», tendo, por isso, um valor potencialmente inferior ao de outras crianças da sua idade. 

Um outro caso diz respeito a Amand, de 90 anos, que passara toda a sua vida na propriedade paroquial de Sainte-Suzanne e devia aí «reformar-se», em conformidade com as regras que o comissário civil Tirol instituíra para as pessoas idosas. No momento da venda dos seus filhos adultos, Denis e Pauline, «foi anunciado como condição expressa que o nomeado Amand, o pai deles de 90 anos, não querendo afastar-se dos filhos, e os filhos não querendo separar-se do pai», iria viver na propriedade do comprador. A sua alimentação em milho seria fornecida pela «República» e ele não seria, «de modo algum, sujeito ao trabalho». Foi o próprio Tirol quem propôs estas últimas condições. 

Qual é a importância histórica?

O produto final das vendas dos bens (terras, escravos e móveis) ultrapassou as expectativas de Tirol, atingindo os cerca de 5,6 milhões de libras tornesas. Perto de metade dessa soma provinha da venda de seres humanos, que se tornaram uma raridade naquele contexto de guerra e, portanto, de interrupção do tráfico de escravos. Numa carta endereçada ao marido para lhe anunciar o encerramento das vendas (e, por conseguinte, a concretização do seu plano inicial), a senhora Beurnonville comentou que «os negros em particular foram vendidos a preços exorbitantes».   O êxito financeiro das vendas permitiu a Tirol criar o primeiro sistema fiscal em Bourbon capaz de atribuir subvenções metropolitanas.  Com efeito, na Reunião, os compradores dos bens eram obrigados a pagar ao tesouro da Colónia, em várias prestações, por um período que poderia chegar aos três anos, ou seja, até 1796, bem depois do decreto de abolição da Convenção Nacional de 1794, abolição essa que a elite das ilhas se esforçava por travar completamente com toda a impunidade.

Retrato do abade Grégoire. Pierre-Joseph-Célestin François (1759-1851). 1800. Óleo sobre tela.
Col. Museu Lorrain, Reserva do Museu de Belas-artes de Nancy, inv. D.III.711

Como foi a reação em Paris? Em 1797, o abade Henri Grégoire, então membro do Conselho dos Quinhentos e famoso pelas suas ações contra a escravatura, acolheu com entusiasmo a notícia de que as propriedades eclesiásticas da ilha da Reunião tinham sido vendidas por milhões de francos. Para ele, essa venda representava uma etapa crucial no caminho para a «regeneração» do clero colonial francês, que ele considerava ter-se tornado ávido e ineficaz, devido ao seu envolvimento na escravatura. Num relatório dirigido aos seus confrades da igreja constitucional, todavia, o abade Grégoire admitiu com consternação que alguns «infelizes africanos» tinham sido vendidos com as terras, uma vez que os colonos das Mascarenhas nunca tinham «publicado o decreto que lhes concedia a liberdade».  Tais comentários sugerem que o abade Grégoire, e talvez outros legisladores opositores da escravatura, faziam vista grossa à prática continuada da República de auferir rendimentos da «venda de homens», apesar da interdição oficial.

 

Notas
[1] No século XVIII, o clero possuía escravos em quase todos os espaços coloniais europeus do mundo. Os seus escravos eram, na maioria, trabalhadores agrícolas em propriedades criadas para financiar as obras das missões, mas também eram trabalhadores domésticos, artesãos, sacristãos ou assistentes de missa, intérpretes etc. Ver Christopher Kellerman, All Oppression Shall Cease: A History of Slavery, Abolitionism, and the Catholic Church (Maryknoll: Orbis Books, 2022); Pier M. Larson, Ocean of Letters: Language and Creolization in an Indian Ocean Diaspora (Cambridge: Cambridge University Press, 2009); Margaret M. Olsen, Slavery and Salvation in Colonial Cartagena de Indias (Gainesville: University Press of Florida, 2004). Segundo o que apurei nas minhas próprias investigações, na segunda metade do século XVIII, os organismos religiosos detinham pelo menos 3000 escravos nas colónias francesas. Para ver um mapa de dados com referências, consultar «Slaveholding Clergy in the Long Eighteenth Century: A Reference Map» (https://arcg.is/1eyiz).
[2] Entre as colónias francesas, só na Reunião é que se venderam sistematicamente os bens do clero durante a Revolução. Noutras colónias francesas, os bens foram apenas esporadicamente apreendidos, sequestrados, arrendados ou vendidos. Em Saint-Domingue em maio de 1793, os comissários civis Sonthonax e Polverel emitiram uma proclamação que visava reprimir as forças rebeldes do Sul e do Oeste da colónia. As suas ordens em Port-au-Prince declaravam que todas as propriedades pertencentes às instituições religiosas ou por elas geridas passariam a fazer parte do «domínio da República». Exigiam os inventários desses bens, incluindo listas de escravos que aí vivessem. Entretanto, pouco depois, os dois comissários civis aboliram totalmente a escravatura em Saint-Domingue (Sonthonax tomou essa medida em agosto de 1793 no Norte, e Polverel, em outubro de 1793 no Sul e no Oeste). Na Martinica, a 24 de setembro de 1793, a Assembleia Republicana votou o confisco dos «bens do clero», que não foram vendidos, mas sim arrendados. A famosa propriedade dos dominicanos em Fonds Saint Jacques (e os seus 500 escravos) permanecia nas mãos dos padres. Na Maurícia e em Guadalupe, algumas propriedades da Igreja passaram para gestão estatal e foram vendidas lote a lote, mas isso só aconteceu na época do Consulado de Napoleão. Ver Jacques Adélaïde-Merlande, La Caraïbe et la Guyane au temps de la Révolution et de l’Empire, 1789-1804 (Paris: Karthala Editions, 1992), 207; P. A. Cabon, Notes sur l’histoire religieuse d’Haïti : de la Révolution au Concordat (1789-1860) (Port-au-Prince: Petit Séminaire Collège Saint-Martial, 1933); Liliane Chauleau, «La Révolution Française à La Martinique», Proceedings of the Meeting of the French Colonial Historical Society 22 (1998): 49–63; William Cormack, Patriots, Royalists, and Terrorists in the West Indies: The French Revolution in Martinique and Guadeloupe, 1789-1802 (Toronto: University of Toronto Press, 2019), 170; Louis Guilbaud, Les Étapes de la Guadeloupe religieuse (Basse-Terre, Guadalupe: Imprimerie Catholique, 1935), 162–63; Alfred Martineau e Louis Philippe May, Trois siècles d’histoire antillaise. Martinique et Guadeloupe de 1635 à nos jours (Paris, 1935); Henri Prentout, L’Ile de France sous Decaen, 1803-1810: essai sur la politique coloniale du premier empire, et la rivalité de la France et de l’Angleterre dans les Indes Orientales (Paris: Hachette, 1901), 172. Será necessário fazer estudos mais aprofundados para perceber se, na Guiana, os escravos foram vendidos como «bens nacionais», por exemplo, os da Congregação do Espírito Santo, que aí geriam vários estabelecimentos.
[3] De acordo com o primeiro contrato celebrado entre a Congregação da Missão e a Companhia das Índias Orientais (22 de outubro de 1712), os missionários serviam as paróquias da ilha e evangelizavam os escravos que aí chegavam da Índia, da África e de Madagáscar. Em troca, a Companhia oferecia-lhes (em usufruto) terras e um escravo por padre para sua subsistência. «Traité fait entre la Compagnie et Messieurs de Saint-Lazare », 22 de outubro de 1712, Arquivos Nacionais do Ultramar, COL F3/206. Um segundo contrato de março de 1721 abriu uma missão lazarista na ilha de França, que a Companhia adquirira recentemente. Esse contrato cedia mais quatro escravos por padre para ajudar a proteger as culturas contra os macacos. «Manuscrit de G. Perboyre (Mémoires de la Mission)», Arquivos da Congregação da Missão, Registo 1506, Volume I, 210-213. Entre 1736 e 1739, a Congregação renegoceia estes termos várias vezes, obtendo um aumento do número de escravos fornecidos pela Companhia (de 16 a 20 por padre). Assim, beneficiavam não só de uma subida das «pensões», mas também de uma isenção dos encargos impostos aos outros habitantes, a saber, a capitação sobre o número de escravos e a corveia, ou seja, o trabalho dos escravos para os projetos públicos. «Concordat entre la Compagnie des Indes et la Congrégation de la Mission pour le service…» (Paris, 27 de julho de 1736. ADR, C°1.070); « Annexe au concordat ci-dessus» (Paris, 3 de março de 1739. ADR C°1.072). Depois de os administradores da coroa francesa tomarem posse das ilhas Mascarenhas em 1767, o estatuto das propriedades paroquiais permaneceu ambíguo até à Revolução. Um decreto do rei datado de 15 de setembro de 1766 estipulava simplesmente que se respeitaria uma «distinção» entre os bens pertencentes à Congregação da Missão e os que pertenciam às paróquias ou à antiga Companhia das Índias. Jean-Baptiste Etienne Delaleu, ed., Code des Iles de France et de Bourbon, Deuxième Édition, vol. I (Port-Louis: Tristan Mallac & Cie., 1826), 9.
[4] Uma carta escrita por um frade lazarista por volta de 1740 utiliza esta linguagem, demonstrando também o êxito do plano concebido entre a Companhia e a Congregação: «As nossas casas são quase todas aprovisionadas de negros para fazer valer as nossas propriedades e nos fazer viver, assim são feitas as grandes despesas.» Carta do frade Etienne Lecocq, circa 1740. O original está conservado nos Arquivos Nacionais, M/214, dossier 9, peça 4, na forma de manuscrito anónimo. Existe uma reprodução paginada desse documento intitulada «Lettre écrite par un missionnaire», nos Arquivos da Congregação da Missão (Paris), Registo 1504. Jean Barassin atribui a carta ao frade lazarista, Etienne Lecocq; outros tinham-na atribuído a um frade Lebel. Ver Jean Barassin, Histoire des établissements religieux de Bourbon au temps de la Compagnie des Indes, 1664-1767 (Saint-Denis : Fondation pour la recherche et le développement de l'océan Indien, 1983), 194 n16.
[5] «Recensement de l’île Bourbon, 1787», Arquivos Nacionais do Ultramar, G1480. Cento e oitenta e sete escravos na ilha de França (Maurícia) também em 1789. «Recensement Général de l’Isle de France» 1780, Arquivos Nacionais do Ultramar, G1474. Nas ilhas Mascarenhas também havia uma comunidade de religiosas, as irmãs cinzentas de Saint-Maurice, ditas de São Paulo de Chartres. Essas freiras foram recrutadas para trabalhar nos hospitais das duas ilhas com o auxílio de escravos fornecidos pela Companhia ou a coroa.
[6] Código Negro das ilhas. (N. da T.)
[7] A correspondência dos missionários indica que a alimentação, a indumentária e os cuidados de saúde são prioridades ativamente tidas em conta. Carta do padre Philippe Caulier ao arcebispo de Paris, Paris, 20 de julho de 1772, Arquivos da Congregação da Missão, fol. 216 (p. 12).
[8] Isso corresponde ao que os historiadores observam em relação a outras comunidades religiosas proprietárias de escravos. Ver Emily Clark, Masterless Mistresses: The New Orleans Ursulines and the Development of a New World Society, 1727-1834 (Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2007); Travis Glasson, Mastering Christianity: Missionary Anglicanism and Slavery in the Atlantic World (Nova Iorque: Oxford University Press, 2012); Stephan Lenik, «Mission Plantations, Space, and Social Control: Jesuits as Planters in French Caribbean Colonies and Frontiers», Journal of Social Archaeology 12, n.º 1 (1 de fevereiro de 2012): 51–71 ; Jon F. Sensbach, «Brothers in Bondage: The Moravians’ Struggle with the Institution of Slavery», Tar Heel Junior Historian 51, n.º 2 (primavera de 2012).
[9] Carta do padre Philippe Caulier, 6 de maio de 1785, Arquivos da Congregação da Missão, Registo 1504, fol. 242v.
[10] Philippe Caulier, «Petit Catéchisme de l'Île de Bourbon tourné au style des esclaves nègres», circa 1760. Arquivos da Congregação da Missão, Registo 1502 (sem fólio).
[11] Carta do padre Caulier a Antoine Jacquier (Superior-geral dos Lazaristas) circa 1764, Arquivos da Congregação da Missão, Registo 1504, f. 61v.
[12] Lecocq, op. cit.
[13] Lecocq, op. cit.
[14] Carta de Pierre-Joseph Teste (prefeito-apostólico, 1746-1772) ao arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, de 1 de março de 1764. Arquivos da Congregação da Missão, Registo 1504, f. 189v. Os arquivos revelam claramente as consequências das escolhas dos missionários: Em 1768, dos 45 escravos adultos que viviam nas duas propriedades de Saint-André e de Sainte-Suzanne, 35 eram casados, a maioria, com filhos. De entre os 74 escravos recenseados nas duas paróquias, apenas três não partilhavam laços de sangue com outro indivíduo pertencente a uma das duas propriedades. Arquivos departamentais da Reunião, 57H: «Etat des biens de la cure du dit lieu de Saint-Suzanne et de Ceux appartenants a la Congregation des pretres de Saint Lazare», 30 de janeiro de 1768.
[15] Lauren R Clay, «Liberty, Equality, Slavery: Debating the Slave Trade in Revolutionary France», The American Historical Review 128, n.º 1 (1 de março de 2023): 89–119; Miranda Frances Spieler, «The Legal Structure of Colonial Rule during the French Revolution», The William and Mary Quarterly, Terceira série, 66, n.º 2 (1 de abril de 2009): 365–408.
[16] Assembleia Nacional, «Décret du 28 mars 1790 concernant les colonies, suivi d’une instruction pour les îles de Saint-Domingue, la Tortue, la Gonave et l’île à Vaches, en annexe de la séance du 30 septembre 1791», Archives Parlementaires de la Révolution Française 31, n.º 1 (1888): 728–34.
[17] Pierre Riel de Beurnonville, Projet de constitution coloniale pour l’Isle de Bourbon; par le colonel P. R. Beurnonville, député extraordinaire des villes de Brou et la Ferté-sur-Aube, à l’Assemblée Nationale (Paris: l’Imprimerie du Patriote François, 1790), 42.
[18] Claude Wanquet, Histoire d’une Révolution. La Réunion, 1789-1803, vol. I (Marselha: Éditions Jeanne Laffitte, 1980), 401.
[19] Cópia de uma carta do padre Lafosse a Legrand, sem data, Arquivos departamentais da Reunião, L319/1.
[20] «Recensement de l’île Bourbon, 1787», Arquivos Nacionais do Ultramar, G1480; «Récapitulation générale du produit de la vente des Biens nationaux autrefois Biens curiaux», Saint-Denis, Ilha de Bourbon, 31 de dezembro de 1793. Arquivos Nacionais do Ultramar, C3/22, Peça 238.
[21] Arquivos departamentais da Reunião, L85. Carta de Duvergé, St. Denis, 23 de janeiro de 1791.
[22] Relativamente ao padre Lafosse e d’Amant, ver Albert Jauze, «Jean Lafosse, curé de Saint-Louis de la Révolution à la Restauration. Pistes de recherches sur le personnage», Revue Historique de l’océan Indien, n.º 15 (2018): 491; Prosper Eve, La religion populaire à la Réunion (Sainte-Clotilde, Reunião: Universidade da Reunião, Instituto de linguística e de antropologia, 1985).
[23] Os membros do Comité das Colónias, consultores que propunham leis sobre as colónias em colaboração com o Ministério da Marinha, eram cada vez mais influenciados pelos interesses coloniais. Eles temiam que muitos deputados considerassem a aprovação da escravatura uma traição dos valores. Por essa razão, parece plausível que tenham deliberadamente ocultado que uma parte importante do valor das propriedades eclesiásticas e dominiais a vender às colónias consistia em seres humanos. No que respeita às operações «secretas» do Comité das Colónias, ver Manuel Covo, «Le Comité des Colonies», La Révolution française. Cahiers de l’Institut d’histoire de la Révolution française, n.º 3 (20 de dezembro de 2012). Efetivamente, existem exemplos concretos dessa dissimulação. Quando o Comité das Colónias publicou um relatório e um projeto de decreto nesse sentido para a Assembleia Legislativa, da autoria de Levavasseur, que, ele próprio, estava ligado a Bourbon, reproduziu quase, palavra a palavra, o artigo da Petição da Assembleia Colonial pedindo autorização para vender os bens do clero. No entanto, omitiu deliberadamente duas menções à escravatura no texto destinado aos colegas da Assembleia Legislativa. Léon Levavasseur, Rapport et projet de décret, concernant la colonie de l’isle de Bourbon, Présentés, au nom du Comité Colonial, par Léon Levavasseur, Député du Département de la Seine-Inférieure, imprimés par délibération du Comité, en vertu du décret de l’Assemblée Nationale (Paris: Imprensa da Assembleia Nacional, 1792). De facto, tudo indica que este relatório nunca foi lido em voz alta e que o projeto-lei nunca foi debatido na Assembleia. Jérôme Mavidal e Émile Laurent, eds., Archives parlementaires de 1787 à 1860 : recueil complet des débats législatifs et politiques des Chambres françaises, vol. L (Paris: Paul Dupont, 1896), 592, nota de rodapé na página 1.
[24] Tirol au Ministre de la Marine, 30 de julho de 1793. Arquivos Nacionais do Ultramar, C3/22, Peça 104.
[25] Tirol au Ministre de la Marine, Saint-André, 19 de junho de 1793. Arquivos Nacionais do Ultramar, Peça 82.
[26] Estes documentos são metodicamente organizados e seguem as vendas aos inquéritos públicos sob a égide de Tirol, de cantão em cantão, a começar por Sainte-Marie, por toda a ilha, até Saint-Denis. Dão pormenores sobre a idade, o sexo e a «casta» dos indivíduos (por exemplo, «crioulo» para os nascidos na ilha, «cafre» para os originários da África, malgaxe ou indianos), mas indicam também os respetivos preços, expressos em libras tornesas para os diferentes grupos de pessoas, apresentadas como «lotes». «Récapitulation générale du produit de la vente des Biens nationaux autrefois Biens curiaux», Saint-Denis, Ilha de Bourbon, 31 de dezembro de 1793. Arquivos Nacionais do Ultramar, C3/22, Peça 238.
[27] «État des biens de la Cure Sainte Suzanne», 23 de fevereiro de 1791, ADR, L388.
[28] Carta do P. Rollin datada de 19 de março de 1795. ADR L300.
[29] Gontran Wellement e Augustin Robert, «Inventaire des biens curiaux du Canton Sainte-Marie. 21 février 1793», in Morts violentes, peines infamantes, condamnations et faits insolites concernant les esclaves et affranchis de Bourbon: (XVIIIe-XIXe siècles), ed. Albert Jauze, Les inédits de l’histoire 3 (Reunião: Les Éditions de Villèle, 2014), 45–50.
[30] Atos da venda dos Negros do cantão de Sainte-Suzanne, 14 de junho de 1793. Arquivos departamentais da Reunião, L388.
[31] Carta de Madame de Beurnonville, Saint-Denis, 10 de agosto de 1793. AN, D/XXV/130.
[32] Wanquet, Histoire d’une Révolution. La Réunion, 1789-1803, I:627.
[33] Grégoire, «De l’état de la Religion dans les Isles de France et de la Réunion», Annales de la Religion, N.º 14, 5 de agosto de 1797, p. 325-6. Como a historiadora Alyssa Sepinwall salienta, para Grégoire, após o Terror, a França não podia renovar-se se não fizesse reformas no domínio da religião e do império. Alyssa Goldstein Sepinwall, The Abbé Grégoire and the French Revolution: The Making of Modern Universalism (Berkeley: University of California Press, 2005), 145.
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A escravaturaA Igreja e a escravatura
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Autor
Nathan Elliot MARVIN

Historiador
Universidade do Arkansas em Little Rock