Abolição da escravatura

A abolição da escravatura na Reunião

20 de dezembro de 1848: a abolição da escravatura na Ilha da Reunião
Autor
Marcel DORIGNY

Historiador


20 de dezembro de 1848: a abolição da escravatura na Ilha da Reunião

Um caminho específico para a «Liberdade Geral»?
As ilhas francesas do Oceano Índico seguiram um caminho rumo à Liberdade geral consideravelmente diferente do das colónias americanas: a Guadalupe, Santo Domingo e a Guiana viveram, entre 1793 e 1794 a 1802, a história tumultuosa da abolição revolucionária da escravatura, desencadeada pela insurreição vitoriosa dos escravos de Santo Domingo que teve início em finais de agosto de 1791.

A Martinica não conheceu essa abolição inicial porque os ocupantes ingleses da ilha impediram a aplicação das «leis francesas». Esta primeira abolição foi revogada em 1802 pela restauração da escravatura imposta por Bonaparte no seguimento de uma violenta reconquista em Guadalupe; porém o fracasso foi total em Santo Domingo, tendo a colónia proclamado a sua independência a 1 de janeiro de 1804, após a capitulação das tropas francesas em Vertières em 18 de novembro de 1803.

No Oceano Índico o processo foi bem diferente: votada pela convenção nacional em 16 de pluvioso do ano II (4 de fevereiro de 1794), a primeira abolição da escravatura nunca foi aplicada, sendo que a escravatura foi mantida na sua totalidade durante o período revolucionário. No entanto, contrariamente à Martinica, estas ilhas francesas não estavam sob ocupação estrangeira, embora as rotas marítimas oceânicas estivessem quase totalmente sob o controlo das frotas britânicas. As causas pelas quais a lei abolicionista não foi aplicada são internas, específicas do sistema esclavagista da região.

Em primeiro lugar, ao contrário das Antilhas, o sistema de plantação estava menos difundido: implementado durante as primeiras décadas do século XVIII, em propriedades de dimensão modesta, não obstante os grandes domínios se terem desenvolvido lentamente. Isto levou, portanto, a uma menor concentração das terras e, consequentemente, à utilização de menos escravos . A cana-de-açúcar, cujo cultivo intensivo esteve sempre intrinsecamente ligado ao aumento da escravatura em massa, levou mais tempo a desenvolver-se aqui, substituindo lentamente as plantações de café que exigiam muito menos mão de obra. A escravatura esteve com certeza presente desde as primeiras explorações agrícolas, mas o seu carácter maciço era bastante inferior ao das ilhas do continente Americano .

Desta particularidade, que não deve ser idealizada , decorre outro facto importante: naturalmente, tal como noutros locais, a escravatura foi alvo de diversas formas de recusa por parte das vítimas, não havendo, contudo, revoltas em larga escala ou um marronnage (fuga de escravos) endémico. A insurreição de 1811 em Saint-Leu foi de certa forma uma exceção , embora diga muito sobre as tensões constantes inerentes à realidade das plantações de escravos . Acima de tudo, a resistência à escravidão manifestava-se de formas menos espetaculares, tais como a manutenção das práticas culturais das terras de origem dos cativos: Madagáscar, África Oriental, Comores e Índia. Contos, música, danças, práticas religiosas mais ou menos misturadas com os ritos católicos  … Assim, nasceu uma cultura específica a esta sociedade esclavagista da Reunião e o fracasso da abolição revolucionária de 1794 só viria reforçar esta especificidade. O facto de na Reunião não ter havido uma expressão significativa da abolição revolucionária que levou o Haïti à independência com o respetivo impacto no colonialismo das Antilhas, fez com que a ilha tivesse sofrido com o restabelecimento violento da escravatura em 1802.

Entre o início do século XIX e a abolição francesa de 1848, o mundo colonial do Oceano Índico atravessou duas grandes mudanças que tiveram um profundo impacto nas práticas esclavagistas.

A primeira grande mudança foi a proibição do tráfico de escravos. Primeiramente imposta pela Inglaterra em 1807, depois alargada a todos as potências presentes na assinatura de um Ato Adicional no Congresso de Viena em 1815: a Reunião, doravante a única colónia francesa na região, não podia ignorar esta nova situação. A importação de novos escravos não podia deixar de ser «clandestina», e ilegal ao abrigo do direito internacional, apesar de ter persistido por muito tempo.

A segunda grande mudança ocorreu quando a Inglaterra proclamou a abolição da escravatura nas suas colónias, em 1833. Como o Oceano Índico colonial era então quase inteiramente britânico, a Reunião continuava a ser o único território esclavagista da região.

Estes dois factos não devem ser omitidos quando se explica o processo «pacífico» de 1848. É certo que os colonos franceses da Reunião permaneceram firmemente ligados à prática da escravatura, que consideravam ser um imperativo para o trabalho nas suas plantações. Porém, conscientes do contexto local e internacional, como poderiam eles impedir a implementação de uma lei de abolição aprovada em Paris, tal como haviam feito entre 1794 e 1802? Por seu lado, os escravos não estavam numa dinâmica de pré-insurreição. Na Martinica, a abolição foi antecipada devido a uma revolta de escravos que ocorreu em Carbet: o decreto de 27 de abril era sem dúvida conhecido na ilha, contudo esperar pelo período de dois meses prescrito pelo governo comportava o risco de desencadear a tão temida insurreição geral. A abolição, efetiva a partir de 22 de maio de 1848 pode, assim, ser interpretada como uma consequência da revolta e não como uma «liberdade concedida» por Paris.

Já na Reunião, o processo de «saída» da escravatura, manteve-se no quadro estabelecido pelo governo provisório.

Joseph Napoleão Sarda, conhecido como Sarda-Garriga, foi nomeado «Comissário-Geral da República» para a Reunião com a missão explícita de implementar o decreto de 27 de abril de 1848, que abolia imediatamente a escravatura em todas as colónias francesas.

Sr. Sarda-Garriga, Comissário-geral da República na ilha da Reunião de 13 de outubro de 1848
a 7 de março de 1850. Louis Antoine Roussin. 1860. Litografia.
Coleção Biblioteca departamental da Reunião

Chegou à ilha, após uma longa viagem, no dia 13 de outubro. Nessa altura, a abolição já tinha sido aplicada nas colónias das Caraíbas. Apesar da pressão exercida pelos colonos que solicitaram uma prorrogação de alguns meses, Sarda-Garriga aplicou à letra as ordens que lhe tinham sido dadas, promulgando um decreto a 18 de outubro, aplicável dois meses depois, de acordo com as instruções oficiais. Este prazo seria escrupulosamente respeitado, sendo que nenhuma abolição antecipada foi autoproclamada na ilha; foi delineada a implementação da nova legislação laboral, prevendo a obrigação de um contrato de trabalho para os «novos livres», vinculando juridicamente o amo aos trabalhadores «contratados». Isto a fim de evitar os riscos de desorganização da produção, especialmente do açúcar, que poderiam ser causados pela eventual deserção de antigos escravos proclamados «livres» de modo repentino. Já em 1793, durante a primeira abolição em Santo Domingo, Sonthonax também tinha previsto uma forma de «trabalho obrigatório» para os novos livres… a lição tinha sido aprendida.

Quando o período de dois meses terminou, Sarda-Garriga implementou a abolição geral da escravatura em 20 de dezembro de 1848 através de uma proclamação solene, começando com a frase seguinte: «Meus amigos, os decretos da República Francesa foram executados: estais livres. Sois todos iguais perante a lei, e à vossa volta apenas tendes irmãos. A liberdade, como sabem, impõe-lhes obrigações. Sejam dignos dela, mostrando à França e ao mundo que ela não pode ser dissociada da ordem e do trabalho…»

Assim, a ordem jurídica foi respeitada até ao último momento, uma vez que não tinha sido proclamada qualquer abolição precoce. Aas fundações profundas da sociedade colonial não tinham dado azo à insurreição.

A pintura emblemática de Albert Garreau, que esteve presente na cerimónia de 20 de dezembro de 1849, é o reflexo perfeito desta «abolição pela lei»: Sarda-Garriga detém numa mão o texto oficial que liberta os escravos imediatamente e, na outra mão, os instrumentos de trabalho, sublinhando que a nova liberdade não era sinónimo de ociosidade… À sua frente, os «novos livres», homens e mulheres, prostram-se em sinal de reconhecimento e aceitação deste ato republicano de Paris… Assim, na Reunião, a legalidade desejada pelo Governo provisório, resultante da Revolução parisiense de fevereiro, foi rigorosamente respeitada. Foi, de facto, uma «abolição concedida» e não o resultado de uma revolta armada. O padrão idealizado nas Antilhas não tinha sido emulado no Oceano Índico.

Alegoria da abolição da escravatura na Reunião, 20 de dezembro de 1848. Alphonse Garreau.
Por volta de 1849. Óleo sobre tela.
© RMN-Grand Palais (museu do quai Branly – Jacques Chirac)
Notas
[1] Assim, em 1848, a distribuição das propriedades fundiárias deixava pouco espaço para os grandes domínios, ao passo que as pequenas explorações agrícolas eram numerosas: 70,4% das explorações possuíam de 0 a 5 hectares; 9,6% de 5 a 10 hectares, 6,7% de 10 a 20 hectares; 9,3% de 20 a 100 hectares e 4% mais de 100 hectares. Na véspera da abolição, a Reunião era caracterizada por uma dispersão extrema de terras.
[2] Em 1848, a população dividia-se nas duas principais categorias jurídicas: 45 300 livres e 64 700 escravos. Evidentemente os escravos eram mais numerosos (quase 60% da população total), porém a proporção estava longe dos mais de 85 % de escravos de Santo Domingo na véspera de 1791.
[3] Ver o artigo de Prosper Eve «La thèse de la douceur de l’esclavage à Bourbon : mythe ou réalité ? », Cahiers des Anneaux de la Mémoire, Europe-Afrique-Amériques», Nantes, 2000, Nº 2, p. 17-38.
[4] A memória desta insurreição de 1811, e especialmente a sua violenta repressão, é hoje apresentada ao público graças a um monumento impressionante erguido na zona de Barachois, obra do artista Henri Maillot. Consultar Anexo A
[5] Ver Claude Wanquet, «Pas de ‘Spartacus noir’ aux Mascareignes ou pourquoi et comment l’abolition de l’esclavage y fut esquivée de 1794 à 1802», Slavery in south west indian ocean, Edition Uttam Bissoondoyal, Mahatma Gandhi Institute, Moka, Maurícia, 1989, 406 p.; não houve nem Makandal, nem Toussaint Louverture...
[6] Veja a tese inédita de Audrey Carotenuto, Esclaves et résistances. De la désobéissance ordinaire
à la révolte dans la société coloniale de l’île Bourbon. (1750-1848), Universidade da Provença, 2006. Consultar documentos anexo B.
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