A escravatura

A Igreja e a escravatura

A Igreja e a escravatura em Bourbon/Reunião
Autor
Prosper EVE

Historiador
Universidade da Reunião


A Igreja e a escravatura em Bourbon/Reunião

Em 1664, o rei de França concedeu plenos poderes à Companhia Francesa das Índias Orientais para explorar a île Dauphine e as ilhas circundantes, das quais, a ilha Bourbon, cabendo a esta empresa mercante exercer os três poderes – executivo, legislativo e judiciário –, bem como garantir o bem-estar espiritual dos habitantes desta última. Visto que o seu objetivo era obter lucro, por ganância, a Companhia não cumpriu de modo satisfatório as suas obrigações. Neste contexto, em 1712, foi assinada uma convenção entre os diretores parisienses da Companhia Francesa das Índias Orientais e a Companhia dos Padres de São Vicente.

Este acordo previa que, para assegurar a sobrevivência destes missionários, a Companhia das Índias Orientais devia fornecer a cada pároco terra e escravos para a explorar, uma vez que nesta ilha somente os escravos eram obrigados a efetuar trabalhos manuais. Os diretores parisienses criaram as condições para que os padres se pudessem dedicar inteiramente à sua tarefa espiritual, pressupondo que estes não podiam ser simultaneamente bons sacerdotes e bons proprietários. Devido a esta simples disposição, os primeiros quatro missionários Lazaristas que chegaram a Bourbon em 1714, e todos aqueles que se lhes seguiram, viram-se forçados a aceitar escravos nas suas casas, envolvendo-se, involuntariamente, na prática deste sistema. A sua prioridade não era interferir abertamente nos assuntos socioeconómicos, porque a Igreja tinha de estar presente em todo o mundo. Os Lazaristas podiam, no máximo, reformar o sistema dentro das suas paredes, uma vez que localmente qualquer ação hostil à escravatura suscitaria a ira da Companhia. A Igreja não teve opção: ou permanecia fiel aos seus princípios, recusando-se a trabalhar em lugares onde reinava a escravatura, ou aceitava trabalhar onde este sistema era aplicado auxiliando aqueles que sofriam.

Dado contexto, que papel desempenhou a Igreja católica nesta ilha das Mascarenhas?
De que margem de manobra dispunha no seu trabalho de conversão dos escravos face aos governadores e proprietários? Que personalidades se destacaram no seio do clero que serviu a ilha entre 1714 e 1848 e de que maneira?

Uma missão impossível

Os Lazaristas da colónia não foram permissivos no respeitante ao batismo dos escravos. Desejavam evitar comportar-se como os padres portugueses que batizavam a troco de pagamento sem ministrarem a menor instrução religiosa. Estipularam duas regras para os escravos, seguindo-as à letra: sem formação de catecismo não havia batismo e sem batismo não havia casamento. Apenas se outorgavam exceções aos escravos em perigo, que se resumiam aos escravos do tráfico entre cinco e dez anos, aos adultos idosos que tinham «volvido aos hábitos de juventude», aos adultos permanentemente incapacitados, desde que demonstrassem muito boa vontade, aos adultos prestes a casar que tinham sido instruídos e preparados há muito tempo. Todavia, esta política esbarrou com dois grandes obstáculos: a língua e a impossibilidades de casar devido à escassez de mulheres.

A aprendizagem da catequese era difícil de organizar uma vez que o público era analfabeto e não dominava o francês. Visto que os escravos eram trazidos da Índia, de Madagáscar, de África, os padres não conheciam os seus diferentes idiomas, pelo que a comunicação entre eles requeria intérpretes.

[Suposto retrato do abade Antoine Davelu]. Thérèse Garnier. 1804. Óleo sobre tela.
Coleção Museu Léon Dierx
Os esforços de alguns missionários como Caulier, Davelu e Durocher para aprender malgaxe ou crioulo e até escrever um dicionário ou catecismos para serem utilizados como instrumentos de trabalho pelos futuros sacerdotes recém-chegados, são louváveis mas insuficientes. Como os senhores receavam a revolta, limitavam as idas e vindas dos seus escravos. Para facilitar a tarefa dos padres, apelou-se para que os senhores proporcionassem as bases aos seus escravos em casa. Todavia, não podiam assumir esta tarefa, já que muitos, não sendo católicos fervorosos, tinham rompido com a Igreja. Preferiram permanecer longe dos padres para não os ouvirem denunciar a sua vaidade, a sua preguiça e a sua liberdade sexual excessiva. Tampouco os governadores eram modelos a seguir. Todos estes elementos contribuíram para o facto de os senhores não encorajarem os seus escravos a prepararem-se para o batismo. A barreira linguística tornava-se evidente durante a confissão, porque os escravos mal conseguiam explicar a duração e frequência dos seus hábitos, nem sempre compreendendo o significado das palavras semana, mês e ano, pelo que era necessário utilizar termos como «de um domingo para outro», «de uma lua para outra» e «de uma colheita de arroz para outra».

Lembrança da ilha da Reunião n° 131. O boucan, Cubatas dos negros. Louis Antoine Roussin. 1949. Litografia.
Coleção Museu Léon Dierx

Para os religiosos, era inconcebível batizar os escravos adultos sem os casar, caso contrário tratar-se-ia de condenar o neófito ao concubinato e à imoralidade. Os escravos apenas se podiam casar, se os governantes trouxessem tantos escravos homens como mulheres para a colónia. Contudo, esta nunca foi a sua preocupação. O desequilíbrio de género constituiu um obstáculo para os missionários Lazaristas. Além disso, não podiam aceitar que uma das suas escravas os deixasse para seguir o seu marido. A este propósito, o prefeito apostólico afirmou ao arcebispo de Paris que esta era a causa da perturbação da moral na colónia. A relação desigual entre os dois sexos explica o fracasso deste projeto, sendo que que, já nos anos 1720, os missionários se sentiam desencorajados, exigindo o seu regresso a França. Em 1720, o Sr. Renou escreveu ao seu superior: «O nosso trabalho com os escravos não tem, até agora, alcançado o sucesso que esperávamos. No entanto, a sua vida de escravidão e miséria, que os torna desprezíveis aos olhos de outros homens, não deixando lugar para o respeito próprio naquilo que fazemos por eles, são, creio eu, o que deveria comprometer um filho do Sr. Vincent a dedicar-se a eles de forma mais eficiente». Nesta colónia, onde a taxa de mortalidade dos escravos necessitava o recrutamento constante de mão-de-obra, a recusa em batizar os escravos se esse ato não fosse seguido pelo casamento complicou a cristianização dos escravos. O desequilíbrio entre os géneros dificultou a reforma da moral dos escravos, embora estes dessem a impressão de aderirem ao que lhes era ensinado.

Os padres encontravam-se impotentes perante a desconfiança dos escravos. O prefeito apostólico Teste observou: «Eles (os Negros) vêem-nos como os doutores dos Brancos, compreendem que falamos com eles segundo a verdade e em nome de Deus… e como chefes da religião dominante no mundo». É-lhes difícil satisfazer ambos os tipos de fiéis, sendo, ao mesmo tempo, sacerdotes dos brancos e o missionários dos escravos. No final, continuaram a ser párocos. Os missionários Lazaristas tiveram dificuldade em trabalhar nesta colónia, porque era complexo converter os escravos quando os próprios senhores eram pouco praticantes, dificilmente tornando-se modelos. Tanto a igreja como o cemitério confirmam que a sociedade de Bourbon se encontrava enraizada na escravatura. A fim de não desagradar aos senhores, concordaram em limitar o número de feriados religiosos e renunciaram a exigir a assiduidade dos escravos no culto aquando dos semiferiados. Na igreja, os bancos estavam reservados para pessoas livres; os escravos tinham de ficar de pé. Durante o período revolucionário, o pároco de Saint-Louis, Jean Lafosse, instalou bancos para os seus escravos no fundo da igreja. Os problemas encontrados por este pároco provam que a margem de manobra do padre para anunciar a mensagem de amor e fraternidade de Cristo aos escravos era mínima nesta sociedade. No cemitério, um muro separava a parte reservada aos brancos da parte reservada aos escravos.

Capela do distrito de Saint-Louis. Louis Antoine Roussin. 1848. Litografia.
Coleção Museu Villèle

Como a Revolução de 1789 levou a uma queda nas vocações, a congregação Lazarista já não podia renovar os seus quadros em Bourbon. Os missionários, idosos e doentes, já não eram eficazes. Os escravos foram abandonados. Estes missionários foram substituídos pelos Padres do Espírito Santo de 1817. O abade Pastre referiu então: «Os Negros, que vivem como animais e morrem quase como tal, seriam propensos a alguma instrução e mesmo a uma mudança de moral, se os seus senhores estivessem dispostos a ajudar-nos, por pouco que fosse. Mas estes últimos tratam os primeiros com tanto rigor e são tão relutantes em fazê-los selar alianças com a igreja que é muito difícil levá-los à prática da religião». Por sua vez, o abade Cottineau salientou que «a corrupção da moral está no seu apogeu» no mundo dos escravos. Nos anos seguintes, a situação agravou-se ainda mais. A prática religiosa era ocasional entre os homens. Em 1836, o prefeito apostólico Poncelet ficou angustiado com a negligência, com o laxismo indefinível da moral na ilha. No que diz respeito aos escravos, apenas os recém-nascidos eram batizados. Os adultos permaneciam alheios à igreja, apenas sendo batizados em perigo iminente de morte. Numa carta de 1827, o abade Minot foi severo para com os escravos: «Os escravos colocam os maiores obstáculos à prática da religião em todos os pontos. A sua má vontade, a sua rudeza, a sua irresistível inclinação para o roubo, o seu libertinismo universal e as dificuldades encontradas pelos seus senhores em fazê-los assistir aos santos ofícios tornam a sua conversão quase impossível». Os senhores persistem em não os enviarem para a igreja.

O padre L. M. Minot. Louis Antoine Roussin. Século XIX. Litografia.
Coleção Museu Villèle

Em 1839, o prefeito apostólico Poncelet confirmou que «embora a instrução religiosa não seja negligenciada em nenhum lugar para os brancos, infelizmente o mesmo não se pode ser dito dos negros, que foram e continuam a ser demasiado negligenciados em termos de ideias religiosas». Desde 1817, os escravos permaneceram ao mesmo nível. Um escravo era batizado se fossem cumpridas certas condições: instrução adequada, arrepender-se pelo passado, e desejar uma nova vida. Cada escravo batizado devia renunciar ao concubinato, casando-se. Em 1837, o abade Bertrand mencionou que de 7000 a 8000 escravos numa paróquia, 5 a 6 eram casados.

Os missionários que tentaram incutir a moral aos escravos

Um vigário de Saint-Pierre, o abade Jean-Baptiste Champ: vítima do seu zelo para com os escravos em 1841

O zelo demonstrado pelo jovem vigário Alexandre Monnet, a partir de Junho de 1840, aos escravos da paróquia de Saint-Denis é certamente conhecido dos seus outros confrades. Um dos seus poucos emuladores não defendeu, como ele, o ministério nas propriedades, mas a missão especializada dos Negros. Era este o método privilegiado pelos missionários da Congregação do Sagrado Coração de Maria fundada pelos Abades Levavasseur e Tisserant. A 31 de julho de 1841, o Conselho privado mencionou o caso do missionário Jean-Baptiste Champ, cujo zelo foi julgado inegável, porém sendo criticado pela sua precipitação e carácter violento, totalmente incompatíveis com as suas funções de vigário da paróquia de Saint-Pierre. Desejava que lhe fosse atribuída uma responsabilidade especial para a instrução religiosa dos escravos, contudo o seu método foi contestado.
O abade Champ foi levado para o hospital de Saint-Denis para aguardar o seu embarque no navio de três mastros Comte de Chazelles, que efetuava o seu regresso a França.

Os administradores locais exigiram mais do que nunca que a escolha dos clérigos fosse feita com grande circunspeção. Porque aqueles que pregavam indiscriminadamente, eram considerados inúteis ou perigosos. Tinham dificuldade em aceitar o estado de degradação em que o escravo vivia. O mau padre «assusta-o sem o corrigir, e o resultado são apenas mentiras e hipocrisia». Ao desenvolverem implacavelmente os vários princípios do cristianismo aplicando-os diretamente ao estado social das colónias, «transmitem desconfiança aos proprietários que consideram a emancipação moral como uma garantia de segurança para o futuro». Os missionários quase sempre carecem de paciência. Talvez eles gostem da perseguição que duplica o zelo, mas encontram nos seus neófitos apenas uma força de inércia. «Estranhos ao país no qual são chamados a exercer o ministério sagrado, não compreendendo a moral que têm por objetivo reformar, acontece frequentemente considerarem como prova de má vontade os esforços de uma administração prudente que deseja reter ou dirigir um zelo inquestionável, mas inconsiderada».

Alexandre Monnet : um novo tipo de missionário numa colónia francesa

Alexandre Monnet, um padre fora do comum, conseguiu construir uma reputação sólida após ter trabalhado em Bourbon, uma pequena colónia francesa no Oceano Índico, durante apenas cinco anos. Chegou em junho de 1840 e em 1845 demitiu-se da colónia para continuar a sua vida como missionário em Madagáscar. Quando regressou a 12 de setembro de 1847, os colonos consideraram-no indesejável, estando prontos para atentar contra a sua vida. Para acalmar a sua ira, o governador Graëb decidiu expulsá-lo dezasseis dias mais tarde. Quando zarpou das costas de Bourbon na noite de 28 para 29 de setembro de 1847, estava plenamente consciente de que esta sanção visava o seu trabalho. A crítica provinha de todos aqueles que tinham um peso nesta colónia, os colonos, o aparelho administrativo, a maioria dos padres.

A. H. Xavier Monnet. Louis Antoine Roussin. 1862. Litografia.
Coleção Museu Villèle

A história da colonização francesa tentou definir a implementação de três ações diferentes num campo específico: ação militar, ação económica e ação cultural. Muito frequentemente, a ação governamental foi precedida por iniciativas individuais. A colonização armada envolveu soldados vindos da França continental, para conquistar e administrar. Após a vitória dos militares, os plantadores, comerciantes, negociantes e prospetores assumiram o controlo, tornando-se agentes de uma colonização entendida como trazendo transformação para o país, bem como um investimento lucrativo. O desenvolvimento económico que beneficiou algumas famílias importantes, um punhado de proprietários, estabelece a legitimidade da expansão política ultramarina e justifica a sua continuação. O aspeto mais sensível é a questão da cultura. Conquistando espíritos, conquistando corações, uma representação do objetivo humanista do projeto colonial, ou possivelmente uma missão civilizadora, a abundância de definições testemunha uma realidade difícil de definir e que reflete o desejo de se concentrar tanto no ideal religioso como no ideal laico. O colonizador declarou claramente a sua ambição. O objetivo era visar a moral de outras populações, assimilando-as no seio de uma civilização de vários séculos, de acordo com as perspetivas da Europa Ocidental, o que levou o colonizador a aventurar-se nas mentalidades, sensibilidades e ética: o elemento mais profundo do homem, muitas vezes nos limites do inconsciente, do qual a religião é apenas uma das expressões possíveis.

Monnet viveu numa altura em que emergia um novo tipo de missionário. Os meios intelectuais e artísticos do século XIX nutriam uma atração pela Idade Média. A idealização desta era passada deveu-se certamente ao movimento Romântico, porém a obra o Génio do Cristianismo de Chateaubriand também desempenhou um papel significativo. No entanto, o medo do mundo moderno resultante das revoluções e do progresso da razão, juntamente com a preocupação com a revolução industrial em curso, pode ter gerado o mesmo efeito: a valorização dos tempos antigos e dos valores tradicionais. O tradicionalismo denuncia o racionalismo e os perigos identificados no questionamento levado a cabo pelos filósofos do século XVIII. O renascimento missionário do século XIX foi definido por toda uma retórica baseada na valorização da Idade Média.

O jovem Alexandre Monnet foi um produto desta época de renovação missionária. Escusado será dizer que a sua cultura literária também influenciou as suas escolhas metodológicas no meio colonial.

Monnet extraiu os seus conhecimentos da mesma fonte da qual extraiu a sua vocação, os Annales de la Propagation de la Foi (Anais de Propagação da Fé), uma revista criada no final de 1822 com vista a divulgar notícias sobre as missões.
Ao converter povos distantes, o missionário levava a civilização a povos selvagens, conseguindo assim compensar a devastação causada pela incredulidade em França e na Europa.

Annales de la propagation de la foi : recueil périodique des lettres des évêques et des missionnaires des missions des deux mondes, et de tous les documents relatifs aux missions et à l’oeuvre de la propagation de la foi. Mars 1840, n° LXIX. Oeuvre pontificale missionnaire de la Propagation (Anais de propagação da fé). 1840. Impressão.
Coleção Museu Villèle

Formado num círculo espiritual em que o movimento missionário se inspira no modelo medieval de conquista e reconquista, Alexandre Monnet, após se ter forjado um retrato do missionário perfeito graças à leitura assídua dos Annales de la Propagation de la Foi, possuía todos os trunfos necessários para escrever a «partitura» que iria apresentar aos círculos evangélicos da ilha de Bourbon.

Muitos aspetos das ações missionárias realizadas por este padre mostram que ele não pode ser simplesmente acusado de ter sido o braço direito do colonizador.

Para começar, pouco tempo após a sua chegada à colónia em junho de 1840, foi-lhe confiada a tarefa de ensinar o catecismo como vigário do pároco de Saint-Denis. Após um primeiro contacto com os poucos escravos presentes na primeira sessão, decidiu lecionar na língua deles e não na sua, para ser compreendido. Notou que os escravos careciam de escolaridade e não dispunham de livros, pelo que apenas compreendiam algumas palavras da língua francesa e ao pronunciá-las deformavam-nas de forma bastante peculiar. Decidiu então colocar-se ao seu nível. A sua intenção não era chegar ao francês através da língua crioula, mas aceitar os escravos como eles eram para os levar a Deus tal qual. Não via a língua deles como um fardo que devia ser absolutamente descartado para conseguir chegar a Deus. Como o legislador tinha tolerado apenas a instrução religiosa para os escravos, sem declarar que esta deveria passar pela aprendizagem da escrita ou pelo menos da leitura, Monnet decidiu que o único método possível era ensinar o catecismo através de perguntas e respostas. Posto que os escravos não possuíam os instrumentos que lhes permitissem compreender todas as subtilezas da língua francesa e visto que ele desejava chegar até eles, cabia-lhe a ele fazer o esforço necessário, e não aos escravos. Para alcançar o seu objetivo, pôs-se imediatamente a escutar os escravos da sua paróquia, aprendendo a sua língua e traduzindo o catecismo para o crioulo, permitindo-lhes compreender. Estava totalmente convencido da necessidade de ensinar na língua do aluno, sendo que em 1845, assim que decidiu seguir os jesuítas em Madagáscar, começou imediatamente a aprender malgaxe.

Uma vez definido e resolvido o problema da língua de comunicação, existia ainda outra questão, não menos grave, que consistia em chegar até aos escravos. A este respeito, teve de derrubar muitas barreiras e deparou-se com as sensibilidades dos proprietários de terras, uma vez que não estava disposto a consentir todos os seus desejos.

Amostra das lições de catecismo em crioulo pelo abade Monnet. In Madagascar et ses deux premiers évêques, pelo Monsenhor Amand-René Maupoint. – Paris: C. Dillet, 1864. T. 2, p. 52-53

Em segundo lugar, quando Monnet definiu os resultados que pretendia alcançar, implementando a sua missão itinerante para os escravos, desagradou os representantes da colónia, pois minava os seus princípios, nomeadamente ao facilitar o casamento entre escravos. Desde os primeiros anos do sistema esclavagista, os padres da ilha Bourbon tiveram de ultrapassar todo o tipo de problemas para poderem evangelizar os escravos. Os senhores consideravam que ao ensinar o catecismo aos escravos, os padres proporcionavam-lhes o acesso a conhecimentos elementares que eram inúteis mas perigosos, uma vez que o padre não podia evitar comunicar a mensagem igualitária de Cristo, nem limitar o seu ensino a um catecismo de resignação e de respeito pelo carácter permanente da ordem estabelecida na sociedade. Consequentemente, os senhores evitavam colaborar com o processo religioso, que, a longo prazo, poderia resultar na desestabilização da sociedade. Ao aproximar-se dos escravos, Monnet pôde criticar a imagem do escravo que vigorava em França devido a cartas escritas pelos próprios padres. Os escravos não tinham nascido ladrões, mentirosos, preguiçosos, lascivos e rebeldes, contudo tornaram-se assim por força das circunstâncias, devido à ferocidade dos senhores, após anos de privação e de todo o tipo de abusos. Numa carta datada de 19 de janeiro de 1842, reiterou: «Aos olhos de um grande número (de padres), eles (os escravos) são apenas bestas e brutos, e no entanto, poderíamos fazer uma obra muito boa junto a eles». Não considerou que a imoralidade dos escravos fosse uma consequência do paganismo, questionando o próprio sistema de escravatura. «Se eles são maus sujeitos, a culpa é dos Brancos, através da sua negligência e indiferença». Ao posicionar-se contra aqueles que tinham um discurso alarmista sobre os escravos, Monnet incomodou sobremaneira. Esboçou um cristianismo onde o missionário é em simultâneo guia, guardião e protetor, em nome da fé. Só a salvação contava para ele. Imaginava uma sociedade alicerçada na fé e dedicada ao culto, escapando ao mundo colonial esclavagista sob a direção paterna do padre. Monnet estava consciente das limitações da sua missão itinerante. Sem a autorização do senhor, não podia entrar numa propriedade. Em Saint-Denis, contudo, só tinha a aprovação de um punhado de proprietários de terras, não podendo chegar a todos os escravos que viviam nesta vasta paróquia. Quando se tornou pároco de São Paulo em 1843, colidiu com colonos que consideravam que a religião era um assunto privado e que não deviam encorajar os seus escravos a converterem-se ao catolicismo, recusando-se a dar-lhe acesso às suas propriedades. Exigiu que o Estado, que desejava a evangelização dos escravos, derrubasse as barreiras impostas pelos senhores. «O meu desejo mais sincero é que todos os missionários digam (ao governo): ou nos permitem o acesso a todos os escravos para que os possamos instruir, transformando-os em cristãos, ou partimos». Em janeiro de 1842, propôs que o Superior da Congregação do Espírito Santo enviasse sacerdotes que desejassem tratar exclusivamente dos escravos da ilha. Quando os missionários de uma nova congregação, especializada na evangelização dos escravos, chegaram à colónia, ele deu-lhes carta branca. Demitiu-se do clero de Bourbon e tornou-se um padre totalmente incontrolável.

Igreja de Saint-Paul, erigida por Mr Davelu. Joseph Barrère. 1843. Guache, lápis pedra negra, goma-arábica.
Coleção Museu Villèle

Ao questionar o método de trabalho dos padres, evangelizando os escravos nos seus locais de residência, alienou todos aqueles que serviam a colónia há muito tempo e que não suportavam a ideia de um recém-chegado dar-lhes lições sobre a questão da abordagem dos escravos e da catequese. Quando anunciou a sua chegada, eles não desejavam parecer menos generosos que o senhores, aceitando a sua presença, sem, no entanto, aprovarem as suas ideias ou as dos senhores. A sua missão itinerante suscitou conflitos de competências entre homens que desejavam proteger a sua posição de autoridade. Em 1840, esteve em Rivière-des-Pluies e Boiscourt no território do pároco de Sainte-Marie, em 1842, em Rivière-du-Mât na casa de Mme Lory no território do pároco de Saint-André, na casa da viúva do Sr. Desbassayns em Saint-Gilles-les-Hauts no território do pároco de Saint-Paul, e na casa de Chateauvieux em Les Colimaçons no território do pároco de Saint-Leu. Os párocos descontentes não hesitaram em criticar o seu método de ação e em repetir que ele avançava demasiado depressa. Monnet distinguiu-se de outros padres nas suas relações com os escravos. Não limitou a sua tarefa a torná-los cristãos, ouvindo os seus problemas e fornecendo-lhes o que mais precisavam. Guiava-os pelo caminho da solidariedade, aconselhando-os a mutualizar as suas poupanças e a geri-las por si próprios. Ao depositar a sua confiança neles, cultivava-os e devolvia-lhes a sua humanidade. Todos aqueles que consideravam o escravo como uma peça de mobiliário não lhe perdoavam a sua audácia.

Capela de N. Sra. de Bel-Air, erigida por Madame Jurien de la Gravière. Distrito Sainte-Suzanne. Louis Antoine Roussin. 1880. Litografia.
Coleção Museu Villèle

Em terceiro lugar, Monnet não era homem que aceitasse seguir os colonos em todos os seus velhos hábitos, não hesitando criticar o sistema esclavagista, que considerava uma heresia  .

A mensagem de amor universal transmitida por Monnet era incompatível com o sistema de exploração do homem pelo homem que negava o elemento humano do trabalhador manual. Monnet declarou abertamente que a escravatura era um verdadeiro obstáculo encontrado pelo padre na sua tarefa de evangelização e, a este respeito, a sua franqueza só podia atrair hostilidade e impedir o alargamento do seu círculo de conhecidos. Chegou em junho de 1840 e, no final do ano, tinha declarado que a evangelização devia andar de mãos dadas com a emancipação. Assim, denunciou abertamente o sistema esclavagista. Declarou muito simplesmente que os missionários não podiam cumprir a sua tarefa até que os escravos fossem livres de expressar a sua fé como desejavam, caso contrário seria inútil realizar qualquer missão. Antes de mais, defendeu a emancipação dos escravos, não considerando a evangelização como um prelúdio para uma proclamação da abolição da escravatura. Na sua opinião, em 1840 os escravos estavam suficientemente maduros para se emanciparem. A sua resposta a todos aqueles que declaravam que os escravos precisavam de ser moralizados, era que os escravos nunca poderiam ser religiosos enquanto tivessem de suportar a tirania dos Brancos e de depender deles, uma vez que estes últimos «pouco se preocupavam com a verdadeira degradação dos seus escravos, desde que realizassem o seu trabalho nos campos ou na fábrica de açúcar». Contestou os cenários sombrios da abolição prevista pelos colonos. Àqueles que, citando o exemplo de São Domingos nas caraíbas, declararam que os escravos iriam causar estragos na colónia, respondeu calmamente: «Se os escravos da ilha de Bourbon forem emancipados, não há maior perigo de tumultos e revolução (a temer), do que houve na minha aldeia em 1830». Era um verdadeiro abolicionista, uma vez que não se limitava a declarar a sua oposição à escravatura, considerando também a natureza de uma futura sociedade sem escravos, prevendo uma compensação para os senhores, primeiramente para derrubar o argumento de que estavam a ser espoliados dos seus bens como justificação da sua recusa da abolição. De seguida, evitando que fossem arruinados, desejava, na medida do possível, proteger os escravos, uma vez que seriam os primeiros afetados pela possível falência dos proprietários de terras na sociedade pós-abolicionista. Ele não desejava que uma miséria fosse substituída por outra.

A sua atitude perante a abolição da escravatura levou a reações negativas por parte dos outros padres. Quando em março de 1848, na qualidade de novo superior da Congregação do Espírito Santo, propôs aos seus colegas que libertassem imediatamente os seus escravos, sem esperar que o decreto oficial fosse publicado, as suas palavras foram simplesmente recebidas com riso. A 20 de janeiro de 1847, o governador Graëb não encontrou palavras suficientemente severas quando propôs que o ministro das colónias o retivesse em França. «Monsieur Monnet», declarou ele, «deu-se a conhecer em Bourbon como sendo um homem de ardor, de educação medíocre e de zelo, mas totalmente desprovido de circunspeção e cautela. Os missionários mais sábios do clero colonial vêem-no como um missionário perigoso, mais suscetível de comprometer do que de fazer avançar o trabalho de moralização dos Negros. Salvo algumas exceções, os crioulos odeiam-no, vendo-o como um inimigo que os denunciou e denegriu numa carta plena de publicidade infeliz, onde algumas verdades coexistem com exageros lamentáveis, ilustrando, aliás, o caráter do Sr. Monnet…».

Ao interessar-se pela evangelização dos escravos de Saint Denis e pelos seus problemas quotidianos, Monnet devolveu-lhes a sua dignidade de seres humanos. Eles tiveram finalmente a impressão de que alguém da sociedade dos brancos se interessava por eles. O padre conseguiu despertar neles o seu sentido de solidariedade, reconetando-os com as suas tradições ancestrais. Assim, quando decidiu criar uma capela para eles em la Rivière-des-Pluies, os escravos decidiram trabalhar na construção durante o seu tempo livre, gratuitamente.

Álbum da Reunião. Paróquia de São francisco Xavier. Rivière des Pluies. Louis Antoine Roussin. 1881. Litografia.
Coleção Museu Léon Dierx

Em quarto lugar, quando Monnet, o portador do ideal do amor universal, deixou Bourbon para seguir os Jesuítas até Madagáscar, foi principalmente porque estava insatisfeito com os seus resultados. Após ter pedido aos Jesuítas, no final de 1844, que organizassem uma missão destinada a despertar e dinamizar a piedade dos seus paroquianos em Saint-Paul, acabou por abandonar tudo no início do ano seguinte. Embora os relatórios de missão fossem sempre louváveis, já não podia contentar-se com um efeito de fogo de palha. Na ausência de apoio dos seus colegas, preferiu partir para um lugar com ainda menos recursos do que o Bourbon. Monnet não veio a Bourbon com a firme intenção de agradar o colonizador, porque quando reparou que a sua missão era um fracasso quase total, demitiu-se. Os colonos que eram hostis à influência do clero no domínio social e que excluíam a interferência da religião na organização social não podiam aplaudir um padre que criava um elo entre crença e moralidade.

Em quinto lugar, se Monnet era o braço direito dos colonos, então a sua expulsão da colónia a 28 de setembro de 1847 foi incompreensível, para não dizer inútil. Assume um significado se admitirmos que o seu trabalho não satisfez os colonos locais, que o acusaram de criar problemas na sociedade da ilha. Porque é que os representantes dos colonos teriam depreciado o braço direito da sua sociedade a tal ponto?
Monnet permaneceu humilde ao estender a mão aos escravos, e eles estavam conscientes disso. Devolveu-lhes a sua dignidade, e eles não permaneceram insensíveis perante isso. Via-os como seus iguais, tratava-os como iguais e considerava-os capazes de assumir responsabilidades. Foi criticado e expulso por defendê-los e estar ao seu lado. Por conseguinte, Monnet mereceu-os.

Monnet não desejava iniciar uma revolução na ilha Bourbon. Como padre, queria levar a cabo a sua missão de padre com o seu coração. Na sua missão de evangelização, via um homem dentro de cada homem. Considerava que as diferenças linguísticas e culturais eram uma fonte de riqueza e não as utilizava para rejeitar outras. Todavia, tudo isto foi suficiente para fazer dele um suspeito, um pária, bem como um padre invulgar.

O caso do padre crioulo Frédéric Levavasseur

Em matéria missionária, a ilha Bourbon marcou o ritmo sob a Monarquia de Julho. O impulso dado por Pierre-Louis Frédéric Levavasseur, nascido a 25 de fevereiro de 1811 em Sainte-Marie, foi fenomenal. Ainda não tinha atingido a idade da sabedoria, e já as condições de vida degradantes dos escravos do seu pai e a situação das crianças pequenas que não podiam ir à escola chamavam a sua atenção. Depois de ter aprendido a leitura, escrita e aritmética graças a tutores, frequentou o colégio real em Saint-Denis.

Frédéric Pierre-Louis Levavasseur. Monique Joisseaux . Pintura.
Coleção Episcopado da Reunião

Após a intervenção do vigário apostólico de Bourbon, a 16 de fevereiro de 1842, deixou Brest no navio Sarcelle, rumo à sua ilha natal . Durante a travessia, catequizou os marinheiros e um jovem de Pondicheri. O Sarcelle atracou um mês no Rio de Janeiro onde o missionário constatou o abandono religioso em que os escravos definhavam, em torno de um clero desprovido de zelo e de igrejas ricamente decoradas, a marca de uma religião que era mais de fachada do que real. Na sexta-feira seguinte, 10 de junho, desembarcou em Bourbon, no final da tarde .No início, viveu com os pais, mandando construir uma cabana de palha na sua propriedade para viver como missionário, temendo o dia em que teria de viver afastado da sua mãe, pois sabia que ela sofreria .

Como as palavras por si sós não podem mudar o destino das vítimas, P. L. F. Levavasseur privilegiou os atos como única forma de originar esperança. Para ele, o fim do sistema esclavagista não era uma utopia. Refletiu seriamente na questão do fim da escravatura a médio prazo e pôs em prática um plano de ação para facilitar o nascimento desta nova sociedade que seria mais fraterna e generosa para com os homens alforriados. Ainda jovem, o seu sentido de generosidade levou-o a ver os escravos, considerados desprezíveis pelos poderosos, como seres com uma dignidade ontológica inalienável que mereciam ser tratados numa base igualitária e fraterna. Para facilitar a transição para a liberdade, usava a Bíblia como uma arma, dela tirando a seiva das suas ideias, aproveitando ao máximo o tema da libertação que está no centro da mensagem cristã. É porque a libertação social deve ser alcançada aqui na terra que ele se mobiliza, sendo o seu empenho total, a fim de estabelecer esta Igreja atenta ao destino de todos os mártires, de todos os dominados.

Ao considerar os pobres escravos – totalmente privados material e intelectualmente –, como filhos de Deus, abrindo-lhes as portas da Igreja para distribuir generosamente a palavra divina de Cristo, pretendia criar as condições para a sua inserção numa sociedade que lhes virava as costas, voltada para a inferioridade e degradação do outro. O escravo devia não só ser convertido a Deus, mas a um novo conjunto de valores humanos, centrados no amor, na justiça e na capacidade de enfrentar, pelos outros, a perseguição e a morte. Como não era um demagogo, não concebia uma religião inferior feita à medida para eles, em prol apenas da forma, para engrossar o número de crentes. Atribuía um interesse particular à sua formação e agiu para melhorar o seu acolhimento por parte da Igreja. Sem este trabalho preliminar de reunião do dominante e do dominado, o ressentimento acumulado por este último poderia levar a colónia à sua ruína, evitando um banho de sangue na véspera ou no dia da sua emancipação.

Catecismo dos escravos de propriedade utilizado pelo Senhor Boyer de la Giroday, cunhado do P. Levavasseur, na época da chegada dos missionários do Sagrado Coração de Maria na ilha Bourbon, que utilizaram inicialmente. Coleção Arquivos gerais da Congregação superior do Espírito-Santo

P.L.F. Levavasseur quis assumir os valores humanos, preparando, ao mesmo tempo, os caminhos da evangelização. Não era um projetista nem uma pessoa que dava ordens. Ele empenhou-se, fez o que considerava legítimo fazer, escolhendo com sinceridade este caminho por amor aos mais pequenos, os escravos importados – despersonalizados, «assocializados», desenraizados, desumanizados, desprovidos de ancestralidade – ou os nascidos na ilha, todos eles, abandonados a si mesmos e humilhados da mesma forma, porque Jesus afirma a primazia de Deus através da doação total da sua vida aos filhos do seu Pai. Uma vez que a sua pertença à Igreja Católica Romana e Apostólica o desvia do confinamento, ele não apela apenas para a emancipação dos escravos da sua ilha, mas de todos os escravos do mundo, pois todos aqueles que sofrem merecem a mesma atenção, a mesma compaixão, a mesma redenção. A sua missão libertadora, que rima com amor, estende-se às dimensões do mundo: das ilhas do Oceano Índico – Maurícias, Madagáscar – à África, às Américas, às Antilhas…, onde os Negros são explorados, submetidos ao jugo da exploração, sendo muitas vezes vítimas de abusos, onde sofrem com a maldade das pessoas no poder. Quebra os limites do espaço e do tempo e defende uma solidariedade necessária com toda a humanidade. P. L. F. Levavasseur não obedece a uma lógica imperialista egoísta, não restringe a sua ação apenas ao interior das fronteiras do império colonial francês. O seu projeto era trans-imperial; sendo igualmente aplicável a todos os outros impérios. Além disso, a primeira colónia a acolher um membro da Congregação do Sagrado Coração de Maria – o Padre Jacques-Désiré Laval, pároco de Pinterville –, sob a alçada do vigário apostólico, Monsenhor William Collier, foi a Maurícia, uma colónia sob a tutela dos ingleses. O próprio Padre L.F. Levavasseur candidatou-se para arar este primeiro campo de missão.

Pequeno catecismo crioulo realizado pelo R. P. Levavasseur para os escravos da ilha Bourbon por volta de 1843, utilizado pelo padre Laval.
Coleção Arquivos gerais da Congregação superior do Espírito-Santo

Como estava consciente da natureza injusta e desrespeitosa da sociedade colonial de Bourbon, da sua profunda divisão, decidiu agir com sinceridade a favor daqueles que se encontravam na base e que eram considerados como escórias. O primeiro desejo deste Crioulo não era ser o braço direito dos colonizadores, mantendo os mais fracos isolados, embrutecidos, subjugados, mas assegurar a sua ascensão, fazê-los erguer-se, alcançando no final uma adesão maciça de toda a população à fé católica, à emergência em toda a parte de um verdadeiro cristianismo unido e fraterno. Ele queria que esta sociedade heterogénea se tornasse homogénea. A sua decisão foi fruto da reflexão individual e não da conivência com os representantes do poder político. Visto que a miséria da grande maioria das pessoas livres na sua ilha natal, bem como a grande dispersão das populações, abrandaram a ação do padre dentro da estrutura presbiteral, decidiu levar a cabo a construção de uma série capelas. A sua ideia de descentralização prepararia o futuro, ou seja, a multiplicação das paróquias para melhor servir as populações, favorecendo um ministério de proximidade.

Não é exagerado afirmar que ele se distinguiu sobretudo como artesão da libertação dos escravos da sua ilha natal, muito antes de o governo francês ter tomado a decisão de abolir este sistema. O seu pensamento inovador em matéria de gestão espiritual destes atores da história, quase abandonados a si próprios, dá-lhe um carisma incontestável. Ele queria trazer-lhes a palavra de liberdade na véspera da sua própria libertação, da sua transmutação de objeto para indivíduo. Queria ajudá-los a sair do seu estado de alienação, de dependência, de incapacidade de escolha, de ausência de iniciativa, de serem «expropriados» no sentido mais radical. Para ele, não se tratava apenas de espalhar a fé e a esperança, mas de promover uma transformação histórica da vida. Ele pensava na verdadeira e eterna dignidade do homem e em condições de vida verdadeiras e justas. A esperança é o que dá ao homem a sua liberdade; leva-o a exteriorizar-se e permite-lhe agarrar possibilidades sempre novas.

Tanto as figuras políticas como as religiosas de île de France (atualmente Maurícia) concordaram num ponto: a necessidade de esmagar efetivamente a ilha Bourbon. Num contexto que lhe era fundamentalmente desfavorável, apesar de todas as probabilidades, a Igreja Católica na ilha Bourbon conseguiu evitar seguir os erros dos poderes políticos, aplicando uma política original destinada a preparar a abolição da escravatura. O objetivo da Igreja não era servir a causa do colonizador, mas agir para que, nesta sociedade baseada numa total falta de respeito, os mais desfavorecidos pudessem ver que tinham o seu lugar na Igreja e que a sua dignidade humana seria finalmente reconhecida e respeitada. No tocante ao trabalho missionário no seio da Igreja universal, as decisões mais importantes emanaram da ilha Bourbon.

Notas
[1] Numa carta endereçada ao Rei de França a 20 de setembro de 1814, o Papa Pio VII escreveu: «Ao fazer exigências desta forma, a própria religião mostra-nos que desaprova e amaldiçoa este comércio ignóbil pelo qual os Africanos são explorados e vendidos como se não fossem homens mas sim animais». Ele acrescenta, dirigindo-se aos laicos: «E proibimos qualquer eclesiástico ou laico de ousar aceitar, sob qualquer pretexto, este comércio de Negros; ou de pregar, de qualquer modo, algo contrário a esta carta apostólica» (A. Quenum, Les Eglises Chrétiennes et la traite atlantique du XVè au XIXè siècle, Karthala, Paris, 1993, p.235-236). Pio VIII, através do seu representante, desempenhou um papel importante no Congresso de Viena (1815) a fim de pôr fim ao comércio e à escravatura.
[2] AESD. ND. V. F-M. P. L, T. III, Carta de Levavasseur (Brest) de 16 de fevereiro de 1842 a Libermann (Neuville), p.488-489.
[3] AESD. ND. V. F-M. P. L, T.III, Carta de Levavasseur (Sainte-Suzanne) a Libermann (Neuville), p.508-514.
[4] AESD. ND. V. F-M. P. L, T. III, Carta do abade Levavasseur ao abade Libermann de agosto de 1842, p.516.
[5] Nascido a 18 de setembro de 1803 em Croth, na diocese de Evreux, foi inicialmente médico antes de se tornar padre em Pinterville. Juntou-se à congregação dos Missionários do Sagrado Coração de Maria e partiu para a ilha Maurícia no final de maio de 1841, onde viria a falecer em 1864. Foi beatificado a 29 de abril de 1979.
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A escravaturaA Igreja e a escravatura
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Autor
Prosper EVE

Historiador
Universidade da Reunião