«Dei a Léocadie à Mélanie» .
Estas palavras, escritas por Ombline Desbassayns em 1807, resumem a relação entre estas duas mulheres, que partilharam uma história comum, mas cujos caminhos foram paralelos e, por isso, nunca se cruzaram.
Ombline não voltaria a mencionar Léocadie.
Eram ambas mulheres, porém com estatutos contrários, uma escrava, a outra esclavagista, e pese embora os trajetos aparentemente semelhantes, tiveram vidas muito diferentes. Uma possuía não só imensos bens, mas sobretudo escravos cujo destino era maioritariamente controlado por ela. A outra não possuía nada de seu, nem mesmo os próprios filhos.
Duas mulheres que eram também filhas, esposas, mães e avós.
Léocadie nasceu em 1757, filha de Pierre e Pauline, escravos de Henry Paulin Panon-Desbassayns e descendentes, em parte, de Dominique Modoze e Pierre Mobiliha, dois indianos casados em 1690 .
O seu apelido só foi transmitido à segunda geração, acabando por desaparecer totalmente, por vontade do poder colonial, que negava assim a ancestralidade e a identidade dos escravos.
Léocadie foi alimentada pela mãe, tal como os seus nove irmãos e irmãs .
A família próxima de Ombline diminuiu após a morte do pai em 1801 , ao passo que a família de Léocadie apresentava algumas singularidades.
Esta família numerosa privilegiava as alianças com escravos crioulos e a maioria trabalhava no serviço da casa: criada doméstica, ama, capataz, mordomo, etc. .
Neste aspeto, distingue-se de muitos dos escravos vítimas do tráfico, africanos e malgaxes, cujas uniões eram frequentemente ignoradas, mas que originaram uma descendência igualmente considerável.
Uma questão essencial é a natureza da relação entre estas duas mulheres que «coabitariam» durante quase quatro décadas, cada uma no seu domínio e, sobretudo, cada qual com o seu estatuto e o seu papel.
Não consideramos que tenha havido qualquer tipo de «conivência» entre estas duas pessoas, não implicando cumplicidade entre elas o facto de serem mulheres.
Os seus interesses, indubitavelmente afetivos no essencial, convergiam apenas em torno da questão dos filhos, da amamentação e dos cuidados a prestar-lhes.
Ombline nasceu em 1751, filha de Julien Gonneau e Elisabeth Léger. A mãe faleceu durante o parto, deixando Ombline órfã de mãe e filha única, tendo sido amamentada por uma ama, Madeleine, uma crioula (1735-1814).
«A ama de leite da mamã também morreu» .
A questão das amas de leite e da amamentação é um fio condutor da relação entre estas duas mulheres. Léocadie, bem como as irmãs, cunhadas, filhas e netas, amamentariam os filhos de Ombline, bem como alguns dos seus netos.
Por exemplo, Julien Desbassayns teria tido como ama Appoline, mãe de Léocadie, ou Darie, irmã de Léocadie, e Philippe Desbassayns Clotilde, irmã de Léocadie, ou Dorothée. Quanto a Euphrasie e/ou Joseph Desbassayns, foram certamente alimentados por Perpétue, que os acompanhou a França entre 1790 e 1793. Por fim, Charles foi educado por Toinette, cunhada de Léocadie. Os testemunhos dos vários filhos de Ombline em relação a estas amas revelam sempre um certo apego.
Após o nascimento da filha Candide, em 1780, Léocadie tornar-se-ia ama de Mélanie, nascida em 1781, partindo para França com essa filha de Ombline e, é este grupo familiar que, numa aldeia perto de Toulouse, será afetado pelo falecimento de Léocadie.
Podemos, portanto, aventar a hipótese de uma proximidade afetiva entre Léocadie e Mélanie, já que o papel de ama implica o contacto físico entre a lactante e o lactente. É provável que as diferenças de estatuto, de sexo e de cor desempenhassem um papel irrisório nesta relação.
A questão é de tal forma importante que o genro de Ombline, Joseph de Villèle, abordou várias vezes o tema da amamentação e das amas de leite.
As representações da amamentação na sociedade da época são variadas. Joseph de Villèle passou a sua infância com uma ama de leite, a cerca de dez quilómetros dos pais, em Bourbon, pois as amas de leite trabalhavam em casa. O seu relato sobre as vantagens e desvantagens do recurso a amas é esclarecedor. Quando ainda vivia em Bourbon escreveu:
a minha mulher] que amamenta o seu bebé… como tem os seios enfermos, sofre sempre dores lancinantes… Mélanie amamenta a pequena Luísa e está muito bem. A criança também aceita muito bem o biberão… Não conhecemos outro meio senão fazê-la mamar com precisão e durante mais de um mês, e para isso usamos um cãozinho de apenas sete ou oito dias; há muitos aqui que foram alimentados desta forma.
Esta referência da utilização de animais em Bourbon para resolver problemas de seios gretados ou obstruídos após o parto parece dizer respeito apenas às mulheres de condição livre. Pode ter sido o caso de Ombline, aquando de nascimento de filhos inviáveis.
Enquanto Joseph de Villèle tinha uma opinião negativa sobre o recurso às amas crioulas, o irmão Jean Baptiste, casado com Gertrude, outra das filhas de Ombline, escreveu:
«O meu menino ficou sem alimento e quase morreu. Fomos obrigados a dar-lhe uma ama, à qual se adaptou bem e que o alimenta com brio até hoje.»
A mulher, Gertrude, escreveu:
«Os Negros são sensíveis ao que as crianças fazem por eles. Frédéric, em particular, com a sua ama, a quem tinha muito apego e que o alimentava de bom grado. Ele estava às portas da morte quando esta mulher o começou a amamentar.»
Para alimentar os filhos de Ombline, as amas partilhavam, ou negligenciavam, a amamentação do próprio filho. Não há provas de que alimentassem duas crianças de tenra idade ao mesmo tempo. Ao estabelecerem o vínculo estreito que a amamentação implica, fazendo por vezes depender a sobrevivência da criança da sua disponibilidade, estas mulheres, familiares de Léocadie, apropriavam-se naturalmente de uma «parte» destas crianças. Todavia, isso não tornava Ombline mais próxima destas amas de leite, que lhe retiravam assim uma parte do seu poder materno. Não sabemos porque é que recorreu várias vezes a amas escravas; pode ter sido um costume social no final do século XVIII de pôr em causa a amamentação, ou o resultado de uma impossibilidade fisiológica. No entanto, ela não partilhava a mesma perspetiva do genro Joseph de Villèle, para quem:
«A ideia de uma ama de leite nunca lhe ocorreu [à esposa], e abster-me-ei de lha sugerir. Neste país, as consequências são amiúde muito perniciosas.»
Isto deve-se, sem dúvida, ao facto de que em Bourbon as amas eram negras e escravas, ao passo que em Toulouse eram livres e brancas, o que o leva a apelar aos serviços de uma ama para um dos seus filhos nascidos nesta região.
Este poder das mulheres escravas sobre os seus senhores também se verificou noutros países colonizados, como o Brasil, as Antilhas e a América do Norte, e muitas vezes a amamentação de bebés brancos por mulheres negras esbarrava com o preconceito da cor e o risco de o recém-nascido contrair doenças ou formas de «degeneração» ligadas à condição e à cor dessas mulheres.
Os descendentes destas duas dinastias tinham, portanto, um aspeto em comum: uma história de amamentação por uma mulher negra e escrava.
Enquanto Ombline se casou, com quinze anos por fazer, com Henry Paulin Panon-Desbassayns, que tinha mais de vinte anos do que ela, Léocadie casou-se com Manuell , um escravo indiano da mesma idade, aos dezanove anos, reconciliando-se, assim, de certa forma, com a sua ancestralidade «roubada» por falta de reconhecimento.
Léocadie teve nove filhos, oito dos quais atingiram a idade adulta entre 1777 e 1801, sendo mãe aos vinte anos, enquanto Ombline teve o seu primeiro filho antes dos dezasseis anos.
Ombline deu à luz catorze filhos entre 1771 e 1797, cinco dos quais morreram à nascença ou na infância. A mortalidade infantil durante este período afetava tanto os filhos das mulheres livres como os que nasciam escravos.
As suas experiências da maternidade foram muito diferentes.
Os filhos de Léocadie foram separados da mãe após a morte de Henri Paulin Desbassayns e o exílio de Léocadie em França, em 1807. Até então, viviam com ambos os pais.
« Julien é de Henry, foi a mãe que lho deu; e Petit Pierre é de Frédérick (De Villèle). Dou-lhe estes pormenores, a minha irmã Mélanie ficará muito satisfeita por sabê-los. Charles está muito contente com Julien. (Julien e Petit Pierre são os dois últimos filhos de Léocadie)
Devido à sucessão, alguns foram para Saint-Denis, outros para Saint-Leu ou Sainte-Marie. Esta dispersão explica o facto de, na altura da abolição, terem sido atribuídos apelidos diferentes a estes irmãos e irmãs e aos respetivos filhos.
É de notar que o último filho de Léocadie, Julien, nascido a 22 de março de 1801, tinha seis anos no momento em que foi separado da mãe, o que contradiz a lei que proibia a separação antes dos sete anos .
Os filhos de Ombline foram enviados para França para estudar desde muito cedo. Embora vissem o pai nas suas viagens, alguns passaram longos anos sem ver a mãe.
Enquanto todos os filhos de Léocadie permaneceram em Bourbon, vários dos filhos de Ombline fixaram-se definitivamente em França, como foi o caso de três filhos e de uma filha, Mélanie.
As suas vivências de mães foram pontuadas por separações em ambos os casos, mas não na mesma altura das suas vidas e por razões absolutamente diferentes.
A situação das duas enquanto avós também foi diferente. Embora houvesse mantido apenas um contacto episódico com vários dos seus filhos, Ombline parece ter dado mais atenção aos seus netos, pelo menos aos que viviam na ilha. Por outro lado, devido ao exílio, Léocadie assistiu apenas ao nascimento de dois netos e não viu os outros crescerem.
Ao organizar a sua partida para França, Ombline tinha perfeita consciência daquilo que fazia e de que podia fazer uso da escrava Léocadie como bem lhe aprouvesse.
Ombline permaneceu em Bourbon durante toda a sua vida, com exceção de uma breve viagem à Maurícia. Morreu a 4 de fevereiro de 1846, com mais de 90 anos. Após o seu funeral, um acontecimento importante na colónia, o seu túmulo bem como uma estátua que a representa passaram a fazer parte da paisagem da Reunião.
Léocadie viveu o exílio e o desenraizamento quando, aos cinquenta anos de idade, foi enviada a França por Ombline para acompanhar Mélanie. Esta viagem está bem documentada nos documentos escritos por Joseph de Villèle .
Por causa da guerra franco-inglesa, o Polly, navio em que viajavam, passou por Nova Iorque, e temos informações exatas sobre a vida a bordo. Descreveu a travessia do equador da seguinte forma:
«a cerimónia de batismo da linha… eles (os marinheiros) pouparam os nossos filhos e Cady.»
Em Nova Iorque e Broad Way, onde a família ficou alojada numa pensão, «a metade do preço para as crianças e para Cadi, a criada negra», De Villèle afirma:
«Os negros e as negras estão tão bem vestidos como os outros, estas últimas com elegantes chapéus, toucas de tule, vestidos de tafetá, o que divertiu muito os nossos filhos e fez a nossa boa negra Léocadie levantar os olhos ao céu.»
Permaneceu apenas algumas semanas antes de partir novamente para Bordéus, depois para Toulouse, local de residência da família De Villèle, e finalmente para Mourvilles Basses, a pequena aldeia onde se encontrava o palácio da família.
O pai de Joseph de Villèle também referiu Léocadie:
«Obtive autorização para trazer Cadi e recebi a resposta do Sr. DECRES… Conheço bem os teus bons princípios para o destino desta boa negra que alimentou a tua mulher, cuidou dos teus filhos e que vos será tão útil.»
Mélanie Desbassayns partiu, portanto, com Léocadie e não com a mãe.
O confinamento que implica uma viagem de barco tão longa, seis meses, conduz inevitavelmente à proximidade física e social entre estas pessoas cujo estatuto é radicalmente oposto.
A importância da presença de Léocadie no palácio De Villèle reflete-se nos documentos escritos pelo senhor, que salientam as suas responsabilidades em termos de gestão da economia familiar. Perante as dificuldades financeiras da época, ele escrevia:
«O pessoal doméstico deve ser intimamente integrado nesta economia. Durante dois anos, a negra Léocadie, que alimentou a Sra. de Villèle, ajudou a sua senhora o melhor que pôde. Mas ela não suportou o clima e, em outubro de 1809, deixou-se morrer, para grande desespero de toda a família» .
Foi ali, a 2 de dezembro de 1809, nessa aldeia, que «a negra Léocadie, empregada doméstica … filha de Pierre, negro, e de Pauline, negra» morreu «de exaustão».
Não resta nenhum vestígio da vida de Léocadie neste lugar de exílio, nenhuma marca no cemitério da aldeia onde está enterrada. Em contrapartida, os túmulos da família De Villèle estão bem assinalados. Léocadie viveu apenas 52 anos.
Ao contrário do que havia conhecido durante meio século, Léocadie descobre não só um novo ambiente geográfico, mas também um clima agreste e, sobretudo, um isolamento identitário. No palácio De Villèle, todos eram livres e brancos, não só os senhores, mas também todo o pessoal e os empregados da propriedade, o que constitui uma rutura total para Léocadie e foi, sem dúvida, motivo de mal-estar e desespero.
Podemos interrogar-nos sobre a visão da emancipação na dinastia Desbassayns e as suas consequências para a família de Léocadie.
Enquanto Julien Gonneau, o pai, alforriou cerca de quinze escravos em 1794 , a filha não alforriou nenhum. Henry Paulin Desbassayns, tal como o pai Augustin Panon, libertou poucos escravos, exatamente três: o pai e a mãe de Léocadie , a quem deu um terreno e alguns escravos quando tinham mais de cinquenta anos, e também um sobrinho de Léocadie, Séverin, que acompanhou o senhor na sua primeira viagem a França, no final de 1784, mas que não pôde pisar o solo francês por não terem sido cumpridas todas as formalidades. Libertado em 1785, instala-se durante algum tempo em Saint-André, onde morre em 1803 com o apelido Debassin , que não pôde transmitir aos filhos e do qual foi, sem dúvida, o iniciador.
Registo de emancipação dos escravos Pierre Créole e da esposa Apoline, com «doação de um terreno estabelecido e de dois escravos para que não sejam um peso para a colónia». 8 de abril de 1783.
Col. Arquivos nacionais. Acervo Panon-Desbassayns e de Villèle, inv. 696AP/4, Dossier 3
Ombline ficou-se pela intenção de emancipar. Num «testamento» datado de 1807 , ela exprimiu a vontade de que os seus herdeiros libertassem uma dezena de escravos, entre os quais Manuel, marido de Léocadie, e que dessem aos filhos de Léocadie a liberdade de escolherem o seu senhor. Léocadie embarcou a 14 de março do mesmo ano. Contudo, Ombline só morreu cerca de quarenta anos mais tarde e o seu testamento não previa qualquer outra emancipação.
Este comportamento permite-nos compreender o âmago da relação entre estas duas mulheres de estatutos opostos, cujo poder duma sobre a outra era infalível.
As histórias muito diferentes de Léocadie e Ombline só convergiram verdadeiramente na sua relação com os filhos de Ombline. O seu estatuto oposto, uma escrava e a outra livre, seria sempre a base da sua «coabitação». Enquanto uma, Ombline, tinha o poder da lei, a outra, Léocadie, tirava partido de um poder completamente diferente, muito mais poderoso simbolicamente: o de mãe de substituição.
A genealogia completa de Léocadie efetuada por Christian Galas