O tráfico de escravos

O tráfico de escravos no oceano Índico

O tráfico de escravos no oceano Índico
Autor
Jean-Michel FILLIOT

Historiador


Bourbon e a costa oriental da África, o tráfico de escravos no século XVIII

Poucos são aqueles que não sonham com os Trópicos: os clichés são muito conhecidos. As «ilhas» dos mares do Sul vêm encontrar-se connosco com toda a sua cor tropical, precedidas por uma fama criada por três séculos de letrados que as celebram com vontade. De Leconte de Lisle a Loys Masson, quantos cantaram a visão destes paraísos!

Esqueçamos a ênfase e as memórias de Baudelaire; o que este artigo propõe descrever, tal como escreveram Diderot e d’Alembert é «a compra dos Negros por parte dos europeus, na costa de África, com o fim de empregar estes infelizes nas suas colónias na qualidade de escravos» num determinado momento e enquadramento específico.

Mapa do tráfico de escravos a partir da costa leste da África no século XVIII.
Em Tingatinga ou les Makua de la modernité. 1999.
Museu Villèle. Instituto de Investigação para o Desenvolvimento (IRD)

A que correspondia esta costa africana?

Desde o século VIII, os árabes fundaram entrepostos comerciais nessa costa. Nos séculos XIV e XV, de acordo com Ibn Battouta e viajantes chineses, estas cidades árabes tinham sido prósperas. No século XVI, os portugueses interromperam este comércio; apoderando-se até de algumas cidades, Quíloa (Kilwa), Zanzibar, Melinde, Pate, Mombasa, e durante algum tempo a ilha de Socotorá. As feitorias de Moçambique e Sofala foram os principais pontos deste Contra Costa português.

No século XVII, os ataques levados a cabo pela Turquia e a Arábia (especialmente Omã), combinados com revoltas locais, tinham restringido a dominação. A queda do Forte Jesus de Mombasa, em 1698, marcou o fim da «suserania» portuguesa a norte de Cabo Delgado.

No século XVIII, os franceses dirigiram-se primeiramente ao sul de Cabo Delgado, que os portugueses dominavam, para depois tentarem a sua sorte nos territórios dominados pelos árabes. Durante esse século, a situação política nesta costa foi sempre obscura; os portugueses ainda ajudavam os governadores árabes locais nas lutas contra os seus suseranos em Omã. Os comerciantes das Mascarenhas beneficiaram ou padeceram desta situação: sendo estrangeiros na costa da África oriental, tinham de conciliar-se com todos.

A partir de 1770, o número de «Cafres» (palavra de origem árabe que designa «infiel») foi, em média, pelo menos cinco vezes maior do que o dos Malgaxes. O tráfico iria conhecer um desenvolvimento sem precedentes. Navios reais e embarcações privadas passavam por lá. O armamento metropolitano também desempenhou o seu papel.
Trataremos as duas regiões separadamente: primeiro os territórios portugueses e depois os árabes, visto que o comércio diferia entre os dois.

Nos territórios portugueses

Os portugueses sempre controlaram a costa entre a baía de Delagoa e o Cabo Delgado. As suas possessões formaram a capitania-geral de Moçambique.

Quais eram as feitorias frequentadas?

Em primeiro lugar estavam Moçambique e Sofala. Já Ibo, nas ilhas Querimbe, recebia muitos franceses, visto que este porto tinha a vantagem de estar longe da autoridade do capitão-geral. Foram visitados pelos franceses: «Yanbanne» (Imbano), «em frente ao rio de Sena» (foz do Zambeze), a «baía de Fernand Valoze», Quelimane e, regra geral, os estuários dos rios…

Durante este período, as feitorias portuguesas encontravam-se em completa decadência e de uma «imundície aterradora», de acordo com a expressão comum. A cidade de Moçambique foi o símbolo desse declínio: havia poucas lojas; o mercado era uma zona de lama seca; mulheres agachadas ou deitadas esperavam pelo potencial cliente; cachos de bananas espalhadas pelo chão…; no porto, os barcos franceses ao lado das embarcações portuguesas carregavam a carga humana…

Em Ibo, a decrepitude era a mesma; em 1802, Garneray notou «uma pilha de cabanas escuras, privadas de ar, tendo maus jardins mal conservados e espalhados aqui e ali em desordem… Uma casa deteriorada com um andar, um verdadeiro pardieiro, tinha a função de palácio do governador.» Alguns capitães não passavam pelos intermediários portugueses; tratavam diretamente com os «nativos» em lugares conhecidos apenas por eles. Os outros produtos da colónia de Moçambique, o «morfil» (marfim), por exemplo, não parecem ter sido de grande interesse para os franceses.
Tendo por base os historiadores de língua inglesa, podemos afirmar que as Mascarenhas foram as principais responsáveis pelo tráfico servil nesta possessão portuguesa.

Nos territórios árabes

Costa do Zanguebar. Robert de Vaugondy. 1749.
Coleção Museu Villèle

Do norte de Cabo Delgado até ao Golfo de Áden, estendia-se «a costa de Zanguebar, que estava sob o domínio dos sultões de Mascate. Esta suserania foi acima de tudo formal: na década de 1770, o sultão de Quíloa considerava-se independente…»

Em Zanzibar, em 1804, «vi os franceses apresentarem uma ordem do sultão ao governo desta «ilha», para que os deixassem negociar livremente; isto saldou-se por um insucesso devido às contrariedades com as quais se depararam e logo concluí que as ordens do príncipe não seriam cumpridas em Zanzibar, tanto mais que o nosso governo protegeria de forma imponente o nosso comércio nesta região», escreveu um denominado Dallons a Decaen, o governador-geral da ilha de França e Bourbon.

Por volta de 1785-1790, o comércio na costa de Zanguebar aumentou em detrimento do de Moçambique, porque os escravos eram mais baratos e o reabastecimento mais abundante.

De sul a norte, os entrepostos que vendiam escravos aos franceses eram: Linde «Quíloa», Kilwa, Mafia, Zanzibar, Pemba, «Montbaze» (Mombaça), Melinde, «Pate» (Patta) e Mogadíscio. Enquanto uns eram raramente visitados, como Mogadíscio e Pate; outros viram o seu comércio dificultado por lutas locais: Mombaça, Pemba, Melinde, Mafia. Em última análise, os negociantes das Mascarenhas frequentavam principalmente as ilhas de Quíloa e Zanzibar.

Quiloa

The island and city of Quiloa. N. Parr. 1746.
Coleção Museu Villèle

Nos anos de 1770-1794, Quíloa foi o posto comercial árabe mais frequentado pelos franceses; era «o entreposto comercial de escravos de toda a costa de Zanguebar». Cerca de 1500 escravos partiam todos os anos por volta de 1785-1790 para as Mascarenhas. Já na década de 1770, as partidas eram da ordem de várias centenas, porque em 1776, Jean-Vincent Morice, um armador da ilha de França, tinha feito um contrato com o sultão: «Nós, rei de Quíloa, sultão Hasan, filho do sultão Ibrahim, damos a nossa palavra ao Sr. Morice, francês, que lhe daremos 1000 escravos anualmente por 20 piastras cada um e que nos oferecerá um presente de 2 piastras por cada escravo. Ninguém negociará escravos até que ele tenha recebido os seus e não deseje mais nenhum. Este contrato é feito por 100 anos entre eu e ele. Como garantia, damos-lhe a fortaleza na qual poderá colocar os canhões que lhe prouver e a sua bandeira…».

Este acordo enfitêutico e praticamente assimétrico é explicado pelos dons de cirurgião oferecidos por Morice ao sultão e pelo desejo do sultão de se proteger de Mascate e Zanzibar. Este entreposto comercial teria oferecido «às ilhas de França, Bourbon e Seychelles os meios mais seguros, abundantes e menos dispendiosos para aumentar rapidamente as suas populações de escravos e, consequentemente, proporcionar-lhes o grau de prosperidade que desejam», acrescenta «o amigo» de Morice, Cossigny, na altura engenheiro do Rei em Port-Louis. Infelizmente, este mirífico projeto permaneceu sem efeito: embora o ministro da marinha (Sartine) tivesse «apreciado» a ação de Morice, não lhe deu seguimento; a Guerra de Independência Americana teve prioridade em matéria de homens e dinheiro a partir de 1778. Morice regressou a Quíloa em 1777, bem como outros — Crassons de Medeuil em 1784-1785 e Curt por volta de 1790 — que continuavam a desejar estabelecer um tratado de aliança entre o sultão e o rei de França. A metrópole não mais se interessou pela iniciativa.

Os navios das Mascarenhas continuaram a afluir em grande número até 1794; o tráfico retomou um pouco em 1801, contudo, no ano seguinte, parece ter chegado a vez de Zanzibar de cativar o interesse dos negociantes.

Zanzibar

Já em 1792, a ilha de Zanzibar tinha sido reconhecida como o local mais favorável, a tal ponto que, para os negociantes, suplantava a feitoria de Moçambique. Eventos revolucionários atrasaram esta promoção. Os barcos das Mascarenhas só começaram a dirigir-se regularmente para esse território em 1802.

Zanzibar foi «a principal colónia do imã de Mascate». Milhares de escravos partiam todos os anos para o Golfo Pérsico, a Arábia e a Índia. Os franceses interferiram assim no tráfico, não obstante as recriminações do governador-eunuco e do chefe das alfândegas.

A ilha era «abundante em alimentos, arroz, maky, milho, cocos, frutas, bois, cabritos, aves, tudo o mais barato possível», e apesar das queixas de um certo Dallons («este comércio que arruína os franceses»), sabe-se, graças a Garneray, que «este mercado era abundantemente abastecido com ébano» e que os preços não eram mais altos do que noutros lugares.

Nas feitorias árabes, o tráfico francês era secundário e não primário como nas portuguesas. A maioria dos escravos ia para as possessões muçulmanas. A questão é saber de onde vinham esses escravos e por que meios foram trazidos para a costa. Porém, deparamo-nos com uma dificuldade: a falta de documentos. Dispomos apenas de alguns elementos dispersos.

O interior

Parte da costa oriental da África com a ilha de Madagáscar e os mapas pormenorizados das ilhas de França e Bourbon. Rigobert Bonne. Século XVIII.
Coleção Museu Villèle

O comércio de longa distância existia muito antes do comércio de escravos: marfim e objetos forjados eram levados de aldeia em aldeia.

No final do século XVII, os Yao, do norte de Moçambique, começaram a traficar para além das suas terras. Entraram em contacto com tribos que negociavam com a costa e logo fizeram a viagem por si próprios. Eram os mais importantes traficantes de escravos da África oriental. Trouxeram os seus prisioneiros para os entrepostos comerciais de Moçambique, Quíloa, Ibo e Quelimane.

Mais a norte, os Nyamwezi serviram como intermediários, porém a um nível mais baixo: o seu tráfico só se tornou realmente importante por volta de 1800.

A atividade destes dois povos explicaria porque é que a maioria dos prisioneiros vinha da região do lago Niassa e do oeste do lago Victoria. Isto implicava igualmente uma certa organização central para assegurar envios regulares.

Mais a sul, a partir do Zambeze, o sistema parece ter sido diferente. Os intermediários, «os patamares, que lembram os pombeiros de Angola», foram para o interior à procura de escravos. Tete no Zambeze, foi o ponto mais avançado dos portugueses no continente. A partir desse local, parece ter havido trocas de bens e escravos até às proximidades do lago Mweru, no território do rei de Kazembe, no final do século XVIII.
As indicações assinaladas no mapa explicativo exprimem, portanto, apenas hipóteses de trabalho.

Em conclusão, podemos afirmar que este tráfico foi bem individualizado no espaço e no tempo. Poder-se-ia acreditar que são tempos que já lá vão. Nada é menos certo. Basta ir às ilhas Maurícias, à Reunião, às Seychelles, caminhar pelas ruas de Port-Louis, Curepipe, Saint-Denis, Saint-Paul, Victoria, ou passar pelos campos de cana no momento da ceifa, ou ainda observar as pequenas aldeias aqui e ali: os rostos revelam a diversidade da população, sendo que a África está sempre presente.

Alguns autores quiseram apurar responsabilidades, «sins of the fathers» escreveu o historiador britânico Pope Hennessy. Será que temos direito de nos apresentarmos na qualidade de juízes? O tráfico de escravos era filho do espírito do seu tempo.

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Jean-Michel FILLIOT

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