Reconhecia, no entanto, que esse móvel tinha alma, pois preconizava que fosse educado na religião católica. Além disso, era considerado incapaz de agir por iniciativa própria , não dispondo de responsabilidade civil contratual ou extracontratual, uma vez que o responsável por reparar os danos que o escravo causava era o senhor. O artigo 30.º estabelecia que os senhores eram obrigados, «em caso de furto ou outro dano causado pelos seus escravos… a reparar o dano em seu nome». Porém, podiam ser responsabilizados do ponto de vista penal, porque se um escravo batesse no seu senhor ou num dos membros da respetiva família, o artigo previa a pena de morte . A mesma pena era aplicada aos «excessos ou vias de facto» cometidos contra pessoas livres . A noção de «coisa responsável» constitui um verdadeiro paradoxo. Pode a responsabilidade ser atribuída a uma coisa? De facto, é contraditório considerar a pessoa escravizada como um objeto, subjugá-la a fim de tirar dela o máximo proveito e, ao mesmo tempo, considerá-la indiretamente como um sujeito, pois só um sujeito pode ser responsabilizado. A pessoa escravizada era inquestionavelmente um ser híbrido que dispunha de algumas «prerrogativas» pouco respeitadas pelos seus senhores: alimentação, alojamento, vestuário, garantia de descanso aos domingos e feriados , direito de não ser confiscado e vendido separadamente da mulher e dos filhos impúberes , direito de não ser casado contra a sua vontade pelo seu senhor , e direito de receber cuidados do seu senhor em caso de doença .
Derradeiramente, conclui-se que o Direito não respeitava a dignidade humana das pessoas escravizadas, implicando abusos e gerando violência. Com efeito, encorajava a perversão, porque quando os seres humanos têm poder, abusam dele. A lei previa que os escravizados obedecessem e respeitassem os seus senhores que podiam castigá-los caso cometessem um erro no trabalho ou se atentassem contra a própria vida ou a de um membro da sua família. Apesar de nem todos os senhores serem excessivos, há que reconhecer que a porta para o excesso se encontrava inexoravelmente aberta.
O estatuto das pessoas escravizadas tornava-as incapazes. Embora a maioria delas tivesse completado a sua iniciação antes de ser introduzida na colónia – salvo, evidentemente, os mais jovens – eram considerados indivíduos incultos. Contudo, não obstante a imensidão dos seus infortúnios no seio da sociedade de Bourbon, foram capazes de demonstrar o seu espírito criativo e inventivo. Todos os escravizados almejavam viver livres, portanto cada um deles se mostrou suficientemente engenhoso para quebrar este sistema odioso à sua maneira.
O estudo da conceção do tempo pelos escravizados revela a importância que o dia de Ano Novo revestia para eles, pois situavam-se no tempo em função dele. Quando perguntaram a Jouan, escravo de Sieur Cardonne, detido por marronnage , quanto tempo esteve em fuga, ele deixou o inquiridor boquiaberto. Enquanto o gabinete do marronnage indicava que ele estivera foragido um mês e vinte e um dias, ele afirmava ter estado ausente durante dois anos, certamente não para elevar a sua reputação ou para se fazer de importante, mas simplesmente para expressar que dizia a verdade. As atas do interrogatório após a sua captura revelam a sua capacidade de réplica e perspicácia:
Inquirido sobre há quanto tempo estava foragido
Afirmou dois anos
Inquirido sobre se durante o tempo que estivera em marronnage não havia regressado a casa do seu senhor, nomeadamente no dia quatro do corrente mês.
Respondeu que não punha os pés em casa do seu senhor há dois anos, que havia fugido para o mato.
Fizemos notar ao acusado que está enganado, que não é marron há dois anos, mas apenas desde o dia cinco de setembro último, o que perfaz um mês e vinte e um dias.
Respondeu que não estava enganado, que tinha passado dois dias bananes no mato, o que perfaz dois anos
Inquirido sobre em que lugar passou esses dois anos de marronnage
Respondeu na floresta de Rivière des Pluies e que tinha passado muito tempo em Salazes.
Inquirido sobre se sabia a diferença entre um ano e um mês
Respondeu que distingue o final de um ano e o início de outro graças à festa banane e que sabe que um mês tem quatro semanas .
Pesquisas e reflexões mais aprofundadas sobre o dia de Ano Novo evidenciam tanto a estratégia que adotaram para o celebrar como a forma como os senhores, sobretudo os mais hipócritas, o encaravam. Uma situação observada no dia de Ano Novo na propriedade dos Desbassayns dá-nos uma ideia da complexidade deste sistema.
Como a palavra das pessoas escravizadas era temida, elas viam-se obrigadas a ocultar constantemente os seus pensamentos. Por isso, para desvendar o seu significado, é necessário interpretá-lo a um segundo nível. Em Bourbon, os escravizados criaram um costume que traduz o seu espírito de resistência e a sua vontade de pressionar os dominantes no sentido de agirem de forma racional. No início de cada ano, decidiram desejar aos seus senhores um feliz ano novo. Tratava-se, com efeito, de um dia de tréguas, de compromisso e de verdade. Porque é que um escravo daria votos de um feliz ano novo ao seu senhor? Seria demasiado simplista apontar para a sua extrema alienação. Esta iniciativa incompreensível, constituía uma atitude ousada, com consequências profundas tanto para o escravo como para o senhor. Após desejar um feliz ano novo aos seus senhores, os escravos deviam fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para que os seus senhores passassem um bom ano, e os respetivos senhores deviam adotar a mesma atitude para com eles. Enquanto a maior parte dos senhores acolhia a iniciativa dos escravos e lhes oferecia como recompensa duas mudas de roupa e um copo de álcool ou limonada, alguns dos que estavam agarrados ao sistema detestavam esse dia, pois compreendiam o que estava em jogo. Para eles, esta abordagem era subversiva, viam-na como uma espécie de armadilha e sentiam-se ameaçados. Eram obrigados a dizer «Feliz Ano Novo», deixando de estar com a consciência tranquila, pois não tinham qualquer intenção de se questionarem a si próprios como dominantes. O que os incomodava era o facto de serem condenados à hipocrisia, porque o senhor que retribuía esses votos ao escravizado estava na realidade a assumir um compromisso tácito, devendo fazer todos os possíveis para que o trabalhador tivesse um ano verdadeiramente bom. A iniciativa do escravizado parece assim muito bem pensada e deveras hábil. É certo que não colocava em causa o sistema, mas apelava à não-violência. Através deste apelo dissimulado e subtil no sentido de pôr termo aos excessos, procurava quebrar, à sua maneira, este sistema perverso. É por isso que o senhor que não pretendesse mudar, nem um mínimo que seja, tinha pouca consideração por este dia pois sabia o que se escondia por detrás desta iniciativa.
No seu diário que abarca o período de 1811 a 1835, o proprietário de Sainte-Suzanne, Jean-Baptiste Renoyal de Lescouble, apresenta uma abordagem deste dia pelos escravos e mostra ser o exemplo por excelência da classe dominante hostil a qualquer mudança. Para os escravos, era um dia de descanso e de alegria que dedicavam ao canto e à dança. O diarista constatava que no dia 1 de janeiro de 1813 chovia. «Os Negros de Grinne vieram ontem à noite ao Grand Hazier para festejar o primeiro dia do ano, como de costume; mas hoje a chuva contínua perturbou os seus prazeres, sem contudo os impedir de dançar e de se divertirem» .
Este latifundiário franco-mação, que pretendia ser um homem de ideias avançadas, um liberal, sentia-se pouco à vontade quando os seus escravos se lhe apresentavam nesse dia para cumprir o seu dever e respeitar os seus costumes. Como era intratável com qualquer pessoa que cometesse a mais pequena falta, custava-lhe aceitar que eles ainda lhe desejassem votos de um bom ano, pelo que não compreendia a atitude deles. Sabia muito bem que um carrasco não merecia agradecimentos nem recompensas e considerava o gesto deles ridículo. No dia 1 de janeiro de 1824, escreveu: «A cena do dia de Ano Novo vai começar», confirmando que as ações dos escravos perduravam. «Os gritos de alegria dos Negros, o rufar dos tambores, os votos um tanto ou quanto ridículos de feliz ano novo, tudo isto constitui uma sandice insuportável, que, no entanto, é necessário suportar. Este dia foi aproveitado pelos escravos, como tantos outros, para se embebedarem, fazerem barulho e dançarem, nada mais. Porém esquecem todas as suas mágoas, e isso já é muito» !
Este diarista não é parvo. Embora não pudesse negar o aspeto positivo da festa, o esquecimento momentâneo do seu destino infeliz, não tolerava a sua audácia quando, de manhã, lhe vinham desejar «Feliz ano novo», porque é evidente que ele não pretendia proporcionar-lhes um bom ano. Se considerava «ridículos os seus desejos de feliz ano novo», era porque esperavam que ele mudasse de atitude. Ver os escravos que maltratava sem piedade virem desejar-lhe felicidades era ridículo aos seus olhos, porque não queria ser desestabilizado pela sua excessiva bondade.
Os escravos podiam não se dar bem uns com os outros, pelo que o baile podia originar brigas. A 1 de janeiro de 1826, este senhor passou o dia em casa de um dos seus amigos, Bruno. Ao sair do jantar, um mensageiro disse-lhe que os seus escravos estavam a discutir e a lutar, pelo que ele se dirigiu imediatamente para sua casa. Ao chegar, os ânimos acalmaram, graças à intervenção do Sr. Louis, que também havia sido insultado e ameaçado .
Jean-Baptiste Renoyal de Lescouble ficava contente quando chovia, pois não tinha de suportar as visitas de cortesia dos seus escravos. Como no dia 1 de janeiro de 1827 choveu durante toda a noite e uma boa parte da manhã, constatou com satisfação: «Os votos de ano novo foram dados durante a tarde. O dia correu como de costume, foi um dia bastante banal» . Em 1829, choveu, por isso tampouco teve de receber os escravos, ficando bastante satisfeito: «O primeiro dia do ano, que costuma ser muito entediante, não foi, no entanto, tão aborrecido para mim como eu esperava. Não tive que arcar muito com os bons dias e os votos de feliz ano novo que os Negros nos prodigalizam sem outro interesse que não a esperança de um copo de aguardente. O tempo tem estado tão mau que é preciso ter muita vontade para nos expormos a ele. Em minha casa, houve apenas um incidente: Noël, o meu cozinheiro, embriagou-se e os seus cozinhados correram mal. O Bruno enviou-me um pouco de carne de vaca que havia matado para esse dia famoso» .
A análise que este senhor faz do comportamento dos escravos é interessante, ainda que superficial. Em primeiro lugar, entendia que através da sua atitude, os escravos tornavam o dia «ridículo» e «muito entediante». Estas observações refletem a sua recusa em dar-lhes um presente de ano novo e um copo de aguardente. Em segundo lugar, é de notar que este senhor não se deixava enganar, pois sublinha que a atitude deles era ridícula, considerando intolerável que zombassem dele.
O ano de 1830, que começou com um tempo magnífico, contrasta com o ano anterior, contudo ele não menciona nada sobre os seus escravos . Quando os senhores estavam de luto ou sofriam os efeitos de uma crise económica ou das adversidades climáticas, as consequências repercutiam-se no dia de ano novo dos escravos. O primeiro dia do ano de 1831 «é um dia aborrecido para este proprietário, um dia vulgar, passa um dia sem alegria na companhia da mulher e dos filhos», porque um dos filhos estava doente . No ano seguinte, o ambiente não se altera e ele passa um dia insignificante. «Não estamos em condições de irromper na alegria que reina em tempos de prosperidade» . O final de 1832 não foi um ano bom. «É o último dia do ano de 1832, com o quarto crescente da lua de janeiro, e temos uma seca desoladora. Os proprietários todos devem ter cometido algum crime de monta ou algum pecado grave para merecerem tantas calamidades, talvez por terem sido demasiado brandos para com os seus perseguidores, penso eu» . A 1 de janeiro de 1834, recebeu uma citação de um oficial de justiça informando-o de que o filho, Fortuné, havia mandado apreender os seus dois Negros em Saint-Denis. No dia seguinte, deslocou-se a Saint-Denis para dizer ao procurador que estava indignado com o comportamento do «patife». Termina 1834 com a esperança de que o ano seguinte fosse melhor. A noite do dia 31 foi chuvosa, «os bailes dos Negros e os esforços dos endomingados e endomingadas para imitarem as senhoras de bom gosto divertiram-nos imenso. Em suma, o dia correu alegremente» .
É evidente que ele não se opunha a que os escravos se divertissem nesse dia. No entanto, desejava que o fizessem entre eles, não perturbando a sua tranquilidade com pedidos surrealistas.
Segundo o relato de Victorine Monniot no Diário de Margarida, na madrugada do Ano Novo, os escravos da propriedade de Nicol Robinet de La Serve em Colosse prestaram culto aos seus antepassados com a ajuda do senhor, que honrou o convite que lhe foi endereçado visitando-os à tarde na companhia de toda a sua família .
Esta cerimónia, que dava sentido às suas vidas e os ajudava a suportar o insuportável, contribuía para construir uma ponte entre todos os protagonistas do lar, pois as orações dirigidas aos antepassados beneficiavam todos os que participam no culto.
Embora o dia de Ano Novo em cada propriedade fosse uma ocasião para os escravos se divertirem, estes podiam se deparar com problemas judiciários caso tudo não tivesse sido validado pelo senhor. Quando os escravos de um domínio convidavam pessoas de outras propriedades sem informar o seu senhor, aqueles que apareciam podiam ser expulsos e acusados de violação de propriedade privada. Lamour, escravo cafre e padeiro de Sieur Sentuary, foi dançar a 1 de janeiro de 1800 em Rivière-des-Pluies a convite de Agapit, escravo de Mme Dejean, na companhia dos carpinteiros Gaspard, Come, Pélage e do ferreiro Anicet. Agapit não tinha informado o seu senhor da presença de estranhos, pelo que, a meio do baile, o filho do senhor, armado com uma pistola, perseguiu-os, mandando-os parar. Eles obtemperaram, sendo que apenas Michel foi preso e Agapit obrigado a levá-lo para casa do Sr. Russel a fim de ser castigado. Como escapou pelo caminho, Agapit foi acusado de cumplicidade. Toussaint, o escravo doméstico da viúva Hébrard, diz que Agapit o convidou para tocar violino e que compareceu com a autorização do seu senhor, mas fugiu, tal como os outros escravos, quando o Sr. Dejean os afugentou com a espingarda. Ninguém disse nada de depreciativo sobre o Sr. Dejean. Quando Lamour foi acusado de ter apelado às armas e de ter proferido comentários sediciosos, afirmou não ter sucedido nada disso, lamentando sinceramente ter aceitado o convite de Agapit .
A descrição efetuada por um jesuíta do dia de Ano Novo de 1845 na casa dos Desbassayns, localizada nas alturas de Saint-Paul, levanta questões, pois a tradição oral oferece uma imagem negativa da Senhora Ombline Desbassayns, falecida a 4 de fevereiro de 1846.
Na sua Histoire de Madagascar, o Padre de la Vayssière recorda uma cena verdadeiramente espantosa observada no início de 1845 pelo Padre Bertrand, missionário em Maduré, durante a sua visita a Bourbon e descrita numa carta enviada ao Padre Maillard, seu provincial em Lyon. Este sacerdote, que não aprovava a escravatura, afirmou ter ficado surpreendido ao ver a prática deste sistema sob uma nova luz.
Não posso deixar de vos comunicar algumas observações sobre um assunto sério que há muito está na ordem do dia, a saber, a escravatura. Cheguei com todas as minhas convicções firmes e com os meus sentimentos de desaprovação e de horror contra este tráfico indigno de seres humanos. Sem dúvida que nada pode alterar estas convicções no tocante ao princípio, mas eis algumas observações que me surpreenderam:
1° No primeiro dia do ano, todos os escravos da Senhora Desbassayns chegam em cerimónia, ao som do violino, diante da sua senhora, rodeada pelos filhos e filhas. Depois do cumprimento habitual, um toque de arco dá o sinal, e imediatamente cada senhore escolhe uma das escravas, cada senhora dá a mão a um dos escravos, e o baile começa, um verdadeiro baile de família que está muito longe da ideia que eu tinha da escravatura.
2° Os escravos destas famílias não se consideram tão degradados como se poderia pensar; elevam-se à altura da posição dos seus senhores e orgulham-se do poder e da reputação daqueles que servem. Dizem: a nossa casa, o nosso domínio, e manifestam o espírito de família muito melhor do que todos esses criados da civilização moderna .
Segundo as confidências deste padre antiescravatura, no dia de Ano Novo, após a apresentação dos votos dos escravos ao senhor e aos membros da sua família, realizava-se o baile no interior da casa do senhor. Na abertura do baile, cada filha do senhor dançava com um escravo. Era, segundo ele, um «verdadeiro baile de família». Na realidade, as barreiras não caíam, mas esse dia tornava possível uma aproximação; o que era considerado degradante e intolerável deixava de o ser nesse dia. Esta cena inesperada não parece ter sido inventada pelo padre para louvar esta proprietária abastada e contrariar os abolicionistas da França continental, porque a sua opinião sobre este sistema odioso estava firmemente estabelecida e nada podia mudá-la. Trata-se simplesmente de uma prova da complexidade deste sistema e da necessidade de multiplicar as fontes para o estudar e melhor se aproximar da realidade.