Nos termos dos artigos 39.º e 43.º do édito «relativo aos escravos negros» adotado em dezembro de 1723, vulgarmente conhecido como Code Noir, o escravo é «reputado móvel» ou «imóvel» — consoante o caso — na ilha de Bourbon. Banalizados ao longo dos anos pelos atos jurídicos do quotidiano (sucessão, doação, locação, etc.) e sacralizados no 1.º de brumário, de 14-23 de outubro de 1805, por decreto suplementar no Código Civil, essas prescrições são rigorosamente mantidas na colónia francesa do Oceano Índico até 20 de dezembro de 1848.
Ao recusar-lhe a personalidade jurídica, o Direito de Bourbon, conjugando legislação metropolitana e regulamentação local, contudo, reconhece ao escravo uma certa medida de humanidade. Entre outras coisas, autoriza-o a casar-se, possuir um pecúlio e a «ser educado na religião católica, apostólica e romana». De mais a mais, os diversos procedimentos de alforria, incluindo pelo compra legalizada através da lei de 18 de julho de 1845, cedem-lhe, em teoria, os «mesmos direitos, privilégios e imunidades de que gozam as pessoas nascidas livres».
Confirmado muito precocemente também como «ator potencial» no quadro da justiça repressiva, o escravo vê as suas figuras de acusado ou queixoso esboçarem-se na ilha de Bourbon, entre 1723 e 1848, tanto no Direito como na prática.
É, evidentemente, desde logo, na qualidade de acusado, que o escravo recebe um estatuto no quadro da justiça repressiva. Fazendo referência à filosofia ou aos direitos das sociedades antigas, tanto os agentes públicos metropolitanos como os colonos da ilha de Bourbon lhe reconhecem a capacidade de discernir o bem do mal, pelo menos, o que lhe é proibido pela «Instituição particular» — o que ela lhe autoriza a dizer ou a fazer. Assim, o escravo dispõe de uma certa medida de livre-arbítrio na escolha das suas palavras e dos seus gestos. Essa responsabilidade penal do escravo, aliás, não é contrária à sua qualidade «de objeto de propriedade», mas mais intrínseca. Esperava-se do legislador que o identificasse parcial e pontualmente com um «sujeito de direito» para o tornar imputável pelas suas «inelutáveis» oposições ao estatuto iníquo ao qual é submetido.
Plenamente convencidos do seu «direito de possessão», é evidente que os senhores sempre se consideraram os únicos magistrados com legitimidade para exercer a justiça repressiva sobre os seus escravos. Essa atribuição coerciva da soberania doméstica impõe-se ainda mais facilmente nos primeiros tempos da colonização quando a maioria dos «negros» estava isolada em propriedades afastadas do local ou da sede principal do único tribunal público da ilha de Bourbon. É claro que o poder público nunca se resignou a abandonar completamente as suas prerrogativas judiciais nas colónias. Os artigos 26.º a 32.º do édito de dezembro de 1723 delegam no conselho superior — a jurisdição suprema do direito comum — a competência exclusiva para estatuir sobre os «crimes enormes ou graves», de acordo com os termos da jurisprudência penal do Antigo Regime, cometidos pelos escravos (homicídios, furtos qualificados, rebeliões, etc.). Contestada até 1848 por determinados senhores, esta reapropriação da justiça repressiva pelo poder público será, aliás, reafirmada várias vezes por emendas ou pela adoção de novos textos normativos nessa matéria, como por exemplo, o despacho local de 27 de setembro de 1825.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião
As sanções adotadas para os escravos caracterizam-se pelo mesmo cuidado de distinção e singularização. Baseando-se, desde logo, em penas corporais (mutilações, chicote, pelourinhos, etc.) ou capitais (fogueira, enforcamento, roda, etc.), seriam, pouco a pouco, substituídas — sem, apesar de tudo, desaparecerem do arsenal repressivo de Bourbon — por penas de aprisionamento chamadas de «correntes» ou «ferros». Sem gozar, por princípio, da liberdade de ir e vir, o escravo condenado a uma pena de aprisionamento, vê-se sujeito a executar um trabalho forçado «de utilidade pública» e a usar uma coleira de ferro ligada a uma corrente que o une a outro escravo. Contrariamente à legislação penal das pessoas de condição livre, a duração de detenção para cada infração não é rigorosamente circunscrita por minima e/ou maxima para os escravos. O nomeado Elie, «cafre e negro de enxada», de 45 anos, escravo do sieur Pajot, é condenado a 27 de fevereiro de 1834 a 1 mês de cadeia pelo roubo de uma galinha. Uns dias depois, o nomeado Victor, «malgaxe», doméstico de 25 anos, escravo do sieur Lartigue, é sancionado com 3 meses de cadeia pelo roubo de um pato! Tal como a qualificação dos fatos, a duração da sanção varia de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes reconhecidas à escravatura pelos magistrados e, também, com os seus «preconceitos» a respeito da massa servil.
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Entre 1723 e 1848 os oficiais do juiz conduzem os interrogatórios e, depois, os juízes de instrução evidenciam a vontade dos escravos. Os acusados utilizam diversas táticas, oscilando entre a submissão comedida e a contestação resoluta, passando por todos os tipos de transações audazes para tentar convencê-los da sua versão dos factos. Além disso, rebatem uma improcedência judicial aquando da instrução ou uma absolvição aquando do julgamento, no mínimo, uma requalificação dos factos ou o reconhecimento de circunstâncias atenuantes a fim de beneficiar de uma sanção mais clemente. Os magistrados e assessores também não podem instruir casos que se revelem mais complexos do que inicialmente pareciam ser — pejados de inquéritos preliminares ou de flagrâncias mal amanhadas — sem conferirem as declarações dos escravos.
O reconhecimento do estatuto de «queixoso» — para retomar o termo do despacho criminal de 1670, como o do código de instrução criminal de 1827 — foi mais difícil de obter. Vítima de uma infração ou, até, de um crime, o escravo não pode, juridicamente, apresentar queixa contra o autor, seja ele conhecido ou presumível, perante uma qualquer autoridade judiciária e constituir-se parte civil por sua própria iniciativa. Na leitura do artigo 24.º do édito de dezembro de 1723, incumbe ao senhor «proceder em matéria criminal à reparação dos ultrajes e excessos que terão sido cometidos contra os seus escravos». Mais reparadora do que retribuidora, esta justiça repressiva visa menos reconhecer o prejuízo moral e/ou físico sofrido pela vítima, mas sobretudo indemnizar o proprietário pela destruição ou degradação do seu «bem», que altera definitiva ou temporariamente o seu uso. A morte do escravo resume-se a uma perda absoluta do capital investido aquando da sua aquisição e/ou pelo seu sustento. Cada dia de inatividade da vítima convalescente constitui uma determinada perda de lucro descontado do trabalho que ele deveria fornecer. A 12 de fevereiro de 1736, o sieur Dubois deve, assim, pagar uma indemnização de 200 libras ao sieur Riquebourg por ter afogado o seu escravo, o nomeado Louis, crioulo, de 7 anos, excluindo os seus pais, também eles escravos, do processo. O mesmo se aplica ao sieur Gérard, condenado a 15 de julho de 1828, que terá de pagar uma indemnização de 30 piastras, não ao nomeado Jean, «cafre e negro de enxada» de 30 anos, que «corrigiu violentamente com um pau», deixando-o acamado durante 15 dias, mas ao seu senhor, o sieur Léonard. É, então, a potencial produtividade ou o valor real do «bem» que os magistrados avaliam em numerário nas audiências.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião
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O estatuto de queixoso do escravo muda um pouco perto do fim da Restauração e da Monarquia de Julho. Os artigos 33.º e 71.º do código de instrução criminal de 30 de setembro de 1827 autorizam, respetivamente, o procurador do rei ou o juiz de instrução a «receber as declarações» ou a «citar diante dele e ouvir» todas as testemunhas, incluindo os escravos, de todas as infrações, incluindo as que respeitam o próprio senhor. Até então, o artigo 23.º do édito de dezembro de 1723 proibia que os «negros» depusessem contra os seus proprietários. Se faltassem indícios materiais ou confissões do acusado, os depoimentos dos escravos, sobretudo nos domínios longe do olhar das outras pessoas de condição livre, constituíam provas indispensáveis para demonstrar a culpabilidade ou não do senhor. Apesar disso, nas audiências de julgamento policial, correcional ou criminal, os artigos 156.º (contravenções), 189.º (delitos) e 322.º (crimes) só autorizam esses depoimentos se o próprio acusado o consentir! Nesse caso, contudo, o procedimento permite que a autoridade judiciária receba a deposição do escravo, mas, claro está, sem prestação de juramento e sim a «título informativo». A condenação do sieur Riquebourg, a 9 de outubro de 1841, a uma pena de cinco anos de prisão e a interdição do direito de possuir escravos durante dez anos por «tratamentos bárbaros e desumanos» infligidos aos seus escravos é, neste aspeto, emblemática. A determinação e clarividência das vítimas — os nomeados Estelle, Julie, Brigitte, Désiré ou Pierre-Louis — aquando da sua deposição, fizeram claramente oscilar a balança na decisão do Tribunal Penal de Saint-Denis.
Todavia, as absolvições de Zénon Hibon, a 23 de junho de 1842, pela câmara correcional do tribunal real da colónia, ou de Casimir Gagnant, a 9 de janeiro de 1843, pelo Tribunal Penal da zona do barlavento, por atos de «correção excessiva» e «sevícias graves» sobre vários dos seus escravos, rementem para os sempre indispensáveis conluios dos magistrados e assessores dos tribunais de direito comum com os proprietários de escravos. Mesmo após a entrada em vigor da lei de 18 de julho de 1845 na ilha de Bourbon prevendo explicitamente uma pena de dois anos de prisão e até três cêntimos de francos de coima para os senhores dados como culpados de «sevícias, violências ou vias de facto fora dos limites disciplinares» e a alteração da composição do tribunal penal, as decisões judiciais continuaram a favorecer os senhores. Presente ao Tribunal Penal de Saint-Denis por quatro mortes e diversos «tratamentos bárbaros e desumanos» sobre os escravos da propriedade onde exercia a função de administrador, o sieur Morette beneficiou de circunstâncias atenuantes pelo júri e, no dia 16 de janeiro de 1846, só foi condenado a um ano de prisão.