Memória da escravatura

Memórias

A fábrica da identidade reunionense perante a prova da escravatura
Autor
Mario SERVIABLE

Geógrafo


A fábrica da identidade reunionense perante a prova da escravatura

Introdução: A crioulização como resposta ao racismo de Estado

“A nossa população está dividida em duas classes de homens de naturezas tão díspares que parecem ser o produto de duas criações diferentes.” Foi com estas palavras que o advogado-general Gillot L’Etang recebeu, em Bourbon (a futura Reunião), o novo governador Achille-Guy-Marie de Cheffontaines, em 20 de outubro de 1826. O seu discurso dá o tom do racismo de Estado da época; marca o compasso do imenso projeto a realizar para uma boa convivência em comunidade na ilha, após a abolição da escravatura.

A escravatura, nas colónias quentes de renda do século XVI, é um fenómeno europeu. Inscreve-se na esteira do caminho colombiano para as Américas a partir de 1492, após a viagem inaugural de Cristóvão Colombo, e do caminho gamiano rumo ao oceano Índico a partir de 1497, após a chegada a essa região do Almirante Vasco da Gama. Justifica-se por um duplo determinismo climático e racial e pelo realismo económico, ou seja, pela geografia, num fenómeno comercial que pode ser analisado como a primeira globalização da mercadoria. O Negro tornou-se a força motriz por detrás do processo de produção de mercadorias coloniais com elevado valor acrescentado para os mercados europeus, sendo comprado e revendido como uma máquina-ferramenta, mão-de-obra de baixo custo para produzir nas terras ensolaradas. Esse facto é sublinhado por Luís XIV, o Rei Sol num decreto de 26 de agosto de 1670: “Não há nada que contribua mais para o aumento das colónias e para o cultivo das terras do que o laborioso trabalho dos negros”. A grandeza da França assentará ao longo de quase dois séculos na escravatura dos negros, até 1848. Este fenómeno foi tardiamente reconhecido como um “crime contra a humanidade”. Isto é o essencial que foi acordado. Mas nem tudo é dito. Trata-se do início de uma história europeia que coloca a diferenciação e o ostracismo raciais no centro das ansiedades dos povos e dos estados do Norte, resultando em mais crimes contra a humanidade no século que se seguiria.

Scene of the Coast Africa. Charles-Edward Wagstaff, gravador; segundo François-Auguste Biard, pintor.
Entre 1844 e 1850. Gravura com buril.
Coleção Museu histórico de Villèle

Ele destrói, eu volto a ser um homem”, declamava uma personagem de Shakespeare (Macbeth). Habermas ensinou-nos que em momentos obscuros era necessário analisar a psique europeia: “A psicologia deste tempo é difícil de explicar”. Claro que não se referia à escravatura, mas a um outro tempo, porém à mesma tentação tentacular da Europa de inferiorizar os seres-humanos e de derramar “o sangue impuro” de Shylock, o Judeu, e Caliban, o Negro, duas outras personagens do teatro de Shakespeare do século XVII. O apetite de ogre do Rei dos Amieiros dos contos germânicos é insaciável. Esta intervenção europeia em “países quentes e azuis” (Baudelaire) gira em torno da “calibanização” (Césaire), da contenção colonial e da civilização, apresentadas como “O Fardo do Homem Branco” (The white man’s burden, Kipling).

Este texto apresenta duas partes. Num primeiro momento explora o processo de arbitrariedade que exclui uma parte dos seres vivos da humanidade e da história. Num segundo momento, aborda o regresso do Homem reunionense à sua história através da elaboração da crioulização, um processo de mestiçagem dos corpos e dos imaginários. Este texto é uma homenagem a Pierre Bourdieu por ocasião do 20.° aniversário da sua morte (2002-2022); o sociólogo aborda a dominação no campo do género através da “biologização do social”; procura demonstrar que a história não é apenas mudança e que, frequentemente, consiste na reprodução incessante do mesmo ao longo do tempo: o mesmo olhar para o outro e a mesma visão do outro. Este ponto de vista opressivo e arbitrário pode alimentar um racismo de outra época, porque vem das profundezas do tempo, produzindo os códigos e os comportamentos de hoje.

Cada disciplina possui a sua forma epistémica que a leva a uma visão do mundo. Fazem parte da área de estudo da Geografia, enquanto ciência biopolítica, as relações entre o espaço e os seus habitantes.
Há muito que partilha com a sociologia de Gabriel Tarde (Monadologie et sociologie, 1893) uma identidade funcional feita de “um conhecimento total e universal escrito numa linguagem singular” (Gilles Bastin, Le Monde, 6 de abril de 2017).

O processo de arbitrariedade que exclui uma parte dos seres vivos da humanidade e da história

A renúncia à escravatura em França é antiga. Foi exigida por Bathilde, rainha de França em 649 e ex-escrava redimida, através do édito de Luís X de 3 de julho de 1315. A escravatura negra superou a servidão e as formas de sujeição antiga no século XVI. Acompanhou a expansão europeia nas terras equinoxiais. Tudo está a saque numa economia desenfreada de caça e colheita desviada: o Negro, os filhos do Negro e o território do Negro. A política de contenção colonial instala-se com as suas duas sombras: a calibanização do Negro, ou seja, a submissão natural de acordo com pressupostos de raça, e a civilização do Branco, esta mistura de força, grandeza e artimanha que induziu em erro durante séculos.

A calibanização ou a maldição de Cham

A Primeira República em França aboliu a escravatura em 4 de fevereiro de 1794 para mais tarde a restabelecer em 20 de maio de 1802, ambas as vezes em nome do povo francês. Por vezes, tanto a República como a Igreja cederam face aos lobbies económicos. A primeira com o pretexto de libertar os homens da selvajaria a fim de os tornar civilizados, a segunda através da construção de um discurso sobre a salvação das almas negras. Na encíclica Sicut dudum do Papa Eugénio IV de 13 de janeiro de 1435 e, mais tarde, na carta Rubicensem de 7 de outubro de 1462 do papa-poeta Pio II ao Bispo da Guiné, qualificando o tráfico de escravos como magnum scelus (grande crime), a Igreja posiciona-se contra a escravatura dos negros. Entretanto, a 8 de janeiro de 1454, o Papa Nicolau V, na sua bula Romanus pontifex, autoriza Afonso V, rei de Portugal, a comercializar “negros da Guiné e pagãos”. Neste entremeio de preconceitos, o imaginário europeu cria, em 1611, um ser nascido do Mal e da animalidade: Caliban, personagem da peça de Shakespeare The Tempest, filho de uma bruxa, que vivia submisso a um mágico branco, Próspero, que encarnará, com ambiguidade e ambivalência, o homem negro incivilizado e a força pura ao serviço da inteligência branca. É um homem-besta tropicalizado, comprado e cessível com vista a executar esforços exaustivos sob o sol, tomando em Césaire a imagem da revolta eterna; Césaire define o ato de submissão e domesticação como “calibanização”. A submissão é marcada pela decadência. O lugar do Negro é sob as ordens, sob os golpes e sob os corpos de outros.

Caliban (em “Doze Personagens de Shakespeare”). John Hamilton Mortimer. 20 de maio de 1775. Gravura.
Coleção do The Metropolitan Museum of Art

Assolado pelas ausências, o escravo desenraizado descobre o derradeiro estatuto de órfão, relegado para as caixas negras da imaginação, com a autopiedade, o luto, os silêncios mudos e a injustiça perpétua. Tudo isso confortando a imagem de um ser desprovido de razão.

A segregação legalizada nas terras coloridas, 1724

O Código Negro francês do oceano Índico foi assinado em dezembro de 1723 em Versalhes por Luís XV, rei-criança de 13 anos; foi registado no Conselho Superior de Bourbon a 18 de setembro de 1724, ano de entrada em vigor deste Código. Embora a referência aos judeus e protestantes, ostracizados no Código Negro do Atlântico de 1685, tenha desaparecido, a segregação permanece no cerne do sistema social: “Proibamos aos nossos súbditos brancos de ambos os sexos contraírem matrimónio com negros, sob pena de punição e multa arbitrária, e a todos os padres, sacerdotes ou missionários seculares ou regulares e até aos capelães dos navios de os casarem” (artigo 5.°). Este artigo retoma a filosofia e a frase do artigo 20.° do Grande Decreto de 1 de dezembro de 1674 de Jacob de la Haye: “Proibição dos franceses de se casarem com negras, pois tal desencorajará os negros de serviço, e proibição dos negros de casarem com brancas; é uma confusão para evitar.”

A literatura apropriou-se do tema da mulher branca desejada. No seu primeiro romance Bug-Jargal (1820), Victor Hugo conta a história, que se desenrola na ilha de Santo Domingo em plena insurreição, dos amores platónicos de Pierrot, o escravo negro, apaixonado por Maria, filha do seu senhor branco. Renunciará à Branca a favor do seu rival branco, Léopold d’Auverney, com quem forjou laços fraternos. O seu suicídio sacrificial dá origem à criação de um novo mundo e cria o modelo do Negro romântico. Houat retomou o mesmo tema em 1844 em Les Marrons, considerado o primeiro romance reunionense; Frême, o Negro da Oficina Colonial, não renuncia à mulher branca e foge com Maria. Serão perseguidos como cães. O trabalho excisado da história da ilha e da história das letras será reabilitado pelo sociólogo Raoul Lucas.

A jovem Branca. Tony de B., del; Félix, gravador. 1844. – Gravura.
In Les Marrons / L.-T. Houat. – Paris: Ebrard, 1844.
Coleção Arquivos Departamentais da Reunião

O Código Negro de 1724 não define juridicamente o Branco e faz do escravo uma incerteza. Este último é uma pessoa, um filho de Deus graças ao batismo católico (artigo 1.°) ou uma peça de mobiliário (artigo 39.°)? Indiretamente, levanta questões sobre a identidade do Branco e cria dois personagens confusos envolvidos no heroísmo social: o Marron  e o padre abolicionista. Este código acabaria por impulsionar o fenómeno da marronnage  como única maneira possível de escapar à escravatura e reintegrar a humanidade ativa.“Não há dúvida de que a intenção do legislador em 1723 consistia, de facto, em organizar uma sociedade abertamente baseada em considerações racistas, garantindo o domínio do homem branco sobre o homem negro”, afirmou o jurista Laurent Sermet (1998), apontando para a ausência de uma definição jurídica do escravo, reconhecido indiretamente por várias hipóteses. Escravo é aquele que é vendido, comprado, subjugado como “objeto ou propriedade móvel”. Deste modo, não tem direitos; é a priori Negro, se lermos nas entrelinhas, e como resultado, cada Negro na Terra está destinado a ser escravo. O Branco pertence à classe de proprietários de terras e homens, que os compram, vendem, cedem e libertam de acordo com a sua vontade. Segundo o Padre Joffard, todos os Negros escravos estão destinados a ser Brancos como ele através da liberdade (Declaração de 18 de junho de 1848 em Saint-Philippe).

Perante a “confusão” na relação Negro/Branco temida por Jacob de la Haye em 1674, os investigadores do século XIX tentaram dar uma aparência de ordem e classificação à profusão da mistura dos corpos, resultante da transgressão do Grande Decreto. Assim, William Duckett (Le Dictionnaire de la conversation et de la lecture, 1832-1852) propõe denominações de acordo com a parte de sangue branco do indivíduo. A escala de valor inclui o terceron (3/4 branco), o mulato (1/2 branco), o quarteron, uma antiga unidade de medição (quarto de libra) que designa uma pessoa nascida de um(a) branco(a) com um(a) mestiço(a) (1/8 branco), o quinteron (1/16 branco) e descemos no tom escuro até ao octoron. Alguns termos são reservados aos especialistas: griffe ou zambo (1/4 branco) ou quarteron saltatras para “salto para trás”.

Na sua obra Pièges et difficultés de la langue française (1986), Jean Girodet pede para que se distinga entre mestiços, mulatos e crioulos. O mestiço é “uma pessoa nascida de um pai e de uma mãe pertencentes a duas raças diferentes, independentemente das raças”; o mulato é uma pessoa nascida de um progenitor negro e de outro branco; o crioulo é “uma pessoa branca nascida nas Antilhas ou na Reunião, sendo que este termo nunca deve designar um mestiço ou um mulato.”

A produção de raças e castas: A doutrina francesa do desenvolvimento separado

Na sua expansão colonial, a França será confrontada com o exotismo, o choque de civilizações e homens diferentes. Terá um longo problema negro durante quatro séculos, do século XVII ao século XX. De acordo com Marcus Rediker (A bord du négrier, une histoire atlantique de la traite, 2013), é a escravatura que forjará a conceção da raça, que permitirá à França clarificar a sua posição e construir a sua teoria de desenvolvimento separada. Primeiro foi necessário resolver as distinções entre os Negros escravos. A raça torna-se cor! já não é uma questão de geografia como nas descrições de Lineu no século XVIII. Embora a raça de todos os escravos seja “negra”, o termo casta surge em documentos oficiais de venda, perda, fuga ou emancipação para especificar a identidade, remetendo frequentemente para a origem geográfica. Assim, no decreto n.º 597, de 27 de outubro de 1844, do Bulletin Officiel da Ilha Bourbon, Ragotin é de casta yambane, Zélina de casta malgaxe e Geneviève de casta crioula, ou seja, nascida na ilha. A palavra vem da palavra portuguesa casta que significa “pura, não misturada” e designa um grupo social hierarquizado, endogâmico e hereditário.

Mulher Paria; Negra Crioula; Yambane; Negro Crioulo; Negra de picareta [Várias personagens e uma ave]. Jean Baptiste Louis Dumas, del.. [1827-1830]. Desenho, lápis, aguarela, a cores.
Coleção Arquivos Departamentais da Reunião
A doutrina colonial francesa do desenvolvimento separado das raças é recordada no preâmbulo do Decreto de Richepance de 17 de julho de 1802, em Guadalupe: “As colónias não passam de estabelecimentos formados pelos Europeus, que para lá levaram os Negros como únicos indivíduos idóneos para a exploração desses países; que entre estas duas classes fundamentais dos colonos e respetivos negros, formaram-se raças de sangue misto, sempre distintas dos brancos que formaram os assentamentos.” O Decreto nacional de 2 de julho de 1802 (13 messidor ano X) havia organizado a proibição de “pessoas de cor” entrarem no território europeu da França: “É proibido a todos os estrangeiros trazerem para o território continental da República, qualquer negro, mulato ou outras pessoas de cor de ambos os sexos” (artigo 1.°). Este quadro ideológico de segregação permitirá à França administrar os seus dois impérios: o primeiro do século XVI ao Tratado de Viena de 1815, e o segundo sobre os restos desmantelados do primeiro, enriquecido pela expansão colonial civilizadora da Terceira República e caracterizado pelo Code de l’Indigénat.

O regresso do Homem reunionense à sua História

O regresso do Homem reunionense à sua história foi teorizado por Éric Boyer, Presidente do Conselho Geral da Reunião a partir de 1988. Compreende-se através do “dever da memória”, por meio da crioulização, ou seja, da occisão da calibanização em prol da inauguração de uma nova era chamada “de nós mesmos”, de acordo com a fórmula de Césaire. Este revés permite moldar uma sociedade reunionense mais justa. Esta mudança na história deve ser analisada à luz do discurso do Presidente Sarkozy, de 27 de julho de 2007, na Universidade Anta Diop, em Dakar, que postulava que “a tragédia de África é que o homem africano não entrou suficientemente na história” – uma posição que foi várias vezes saudada.

O dever da lembrança, uma questão de Estado

O dever da memória é uma fórmula feliz! Tornando-se um termo fundamental na política comemorativa do Estado, abrindo as portas e gavetas da lembrança. Sébastien Ledoux (Le Devoir de mémoire, une formule et son histoire, 2016) data o uso da operacionalidade do termo como alavanca para uma política de memória em finais da década de 1990. Decorrente do discurso académico, o termo tem permeado os meios de comunicação social, os pensamentos e os discursos políticos com a garantia mecânica da evidência e relevância. A Lei n.º 83-550, de 30 de junho de 1983, relativa à comemoração da abolição da escravatura e em homenagem às suas vítimas, decretou “um feriado público nos departamentos de Guadalupe, Guiana Francesa, Martinica e Reunião, bem como na coletividade territorial de Maiote”. O Decreto n.º 83-1003, de 23 de novembro de 1983, estabelece um dia de comemoração para cada uma destas comunidades, pois nenhuma data foi unânime; optando-se pelo dia 20 de dezembro para a Reunião. Embora haja uma unidade de ação no reconhecimento da escravatura colonial francesa, não há unidade relativamente ao momento e lugar nas geografias dos territórios distantes para o exercício da comemoração.

Pela Lei n.º 2001-434, de 21 de maio de 2001, a República Francesa reconhece que o tráfico de escravos e a escravatura “perpetrados a partir do século XV nas Américas, nas Caraíbas, no oceano Índico e na Europa contra as populações africanas, ameríndias, malgaxes e indianas constituem um crime contra a humanidade” (artigo 1.°). Um pedido de reconhecimento junto ao Conselho da Europa e às Nações Unidas (artigo 3.°) e a inclusão nos currículos escolares (artigo 2.°) completam este dispositivo legislativo. Além disso, a Lei de 29 de julho de 1881 é alterada no seu artigo 48-1.° com vista a incluir doravante a menção “para defender a memória dos escravos e a honra dos seus descendentes”.

A reparação exigida em nome do atentado à humanidade segue, por vezes, um rumo surpreendente: um novo texto procede à erosão expiatória. Assim, a Lei de 27 de janeiro de 2017 sobre igualdade e cidadania, no seu artigo 219.° revoga a Lei n.º 285 de 30 de abril de 1849 sobre a indemnização concedida aos colonos no seguimento da abolição da escravatura. É muito provável que estas repetidas excisões impeçam um dia, numa nova era, de compreender a realidade de uma era anterior.

O renascimento de si mesmo num novo verbo

Isolado dos seus mortos e das suas palavras, o escravo em perdição, passando dos pequenos veleiros árabes ao fundo dos porões de outros navios negreiros, teve de restabelecer o diálogo na Reunião e renovar totalmente o modo de súplica e oração. Era o preço a pagar para voltar à vida. Porque aqui, nem todos falavam a mesma língua, tendo, no entanto, que viver juntos. As línguas nunca são permutáveis e sempre geram climas civilizacionais diferentes. Assim, quando o diálogo se torna héctico e pobre na linguagem do outro, a tentação é viver de empréstimos, cada um contratando dívidas figuradas de adoção, ao sabor das tendências e da inteligência emocional de cada um, até ao desenvolvimento de um organismo orgásmico: a linguagem crioula.

Koz langaz. William Zitte. 199. Acrílico sobre tela, stencil.
Coleção Artoteca da Reunião

A crioulização é todo o processo de mistura de corpos e imaginários, resultando em metamorfoses e novas realidades metamórficas, produzidas pelo contacto, o toque e a intrusão. É através do toque que o apego a uma nova terra ocorre. Na Reunião, o verbo crioulo tornou-se carne numa aventura coexistencial. Nesta recordação de vidas desconhecidas, através dos interstícios da história oficial do tráfico de escravos, salientemos no regresso dos nossos mortos, pelos quais a tristeza que sentimos nunca será apagada, o renascimento de si mesmo num novo verbo. É assim que as populações protagonistas, incluindo as que são originárias do tráfico de escravos, “falarão mais alto do que os desastres” segundo Césaire.

Organizar “o tempo de nós mesmos” aqui

Césaire proclama, numa carta de rutura a Maurice Thorez, líder do Partido Comunista francês, a fim de se libertar das deficiências da Quarta República face às suas antigas periferias escravas: “Chegou a hora de nós mesmos”. Ele propôs erigir o “nós” na liberdade de todos os “eu”; propôs construir a Nação francesa com as auréolas do distante, no sentido de manchas vergonhosas e incontinentes na cama do passado, e com a aura do prestigiado centro, no sentido de Walter Benjamin, representado pela República. Simbolicamente, Césaire, poeta que falava na arena política, considerava que as margens são essenciais como lição de humanidade, porque são elas que permitem enquadrar a página. Para este novo pacto republicano, era necessário permanecer insensível às mágoas do passado, reprimir o rancor, reconstruir o conceito e os reflexos de autonomia e responsabilidade e perdoar a República pelas suas imperfeições. Porque, segundo ele, “odiar é depender de novo”.

Nos anúncios publicitários franceses, persistiu durante muito tempo a imagem de um negro hilariante, feliz e subordinado com um barrete turco vermelho, como uma versão condensada da história colonial francesa. Ninguém via malícia nem maldade na publicidade que representava o negro da Banania. Os sociólogos Bourdieu e Luc Boltanski, no seu livro Production de l’idéologie dominante (1976), tinham-nos contudo alertado contra uma condescendência adulterada. O MRAP instaurou uma ação judicial contra o uso da imagem do Negro da Banania pelo grupo Nutrimaine, considerado “racista e violador da dignidade humana”. Ganhou o seu caso em 20 de maio de 2011 pois a imagem e o slogan (Y a bon Banania) foram considerados como sendo o veículo de um cliché esgotado do Negro, eternamente à porta do mundo civilizado. “Um homem negro só sabe falar um francês simplificado”, havia destacado David Marty, o advogado do MRAP.

Banania y’a bon: [cartaz]. 1915. Litografia a cores.
Coleção Biblioteca nacional de França, departamento Estampas e fotografia,
ENT DN-1 (CAMIS)-GRAND ROUL

Conclusão : A resolução da identidade no coração de uma sociedade mais justa

Qual pode ser a finalidade do debate atual sobre a escravatura? Para além do exercício da transmissão, pode contribuir para a criação de uma sociedade mais justa cujos dois grandes princípios são os seguintes: o direito à liberdade e o direito à diferença. O princípio de liberdade confere a todos um direito idêntico baseado na igualdade entre todos os indivíduos. O princípio da diferença é justificado pela existência, no mesmo conjunto político, de homens e mulheres que não possuem as mesmas história e geografia, que não partilham o mesmo passado, o mesmo mar, a mesma culinária e a mesma língua. Nem todos os franceses têm a mesma identidade. A identidade é sempre o resultado do que acontece entre si e os outros através do toque; este caminho refere-se à imagem da água, inodora e incolor, que assume o sabor e a cor daquilo que encontra. E no calor tropical, longe das neves de outrora e dali, os homens e as mulheres fizeram outros encontros aqui, na Reunião, nos meandros de outras situações: a escravatura e a utopia crioula, termo este que acreditamos significar ilusão mas que, na verdade, designa a esperança. Para que a troca vingue o filósofo Georges Didi-Huberman exorta-nos a repensarmos juntos o passado, o presente e o futuro, a fim de ter êxito neste perigo pedagógico que é qualquer transmissão.

Notas
[1] N. da T.: Marron – Escravo em fuga.
[2] N. da T.: Marronage – Fuga de escravos.
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