A escravatura

Resistências à escravatura

A arqueologia do marronnage na Ilha da Reunião
Autor
Anne-Laure DIJOUX

Arqueóloga


A arqueologia do marronnage na Ilha da Reunião

O termo «marronnage » designa um fenómeno muito particular: a fuga dos escravos para as montanhas ou pelo mar, a fim de escapar à servidão imposta pelos senhores nas «habitações» (propriedades).

Este tipo de resistência existiu em todos os territórios e em todas as épocas sempre que as populações eram escravizadas. Derivado da palavra espanhola cimarrón, que se aplica ao caráter «selvagem» de um animal doméstico que voltou a viver em liberdade, o marronnage constitui a forma de resistência mais direta ao sistema da escravatura, visto que se traduz numa rutura completa e voluntária da condição de escravo [CAROTENUTO,2006]. Na ilha da Reunião, o marronnage é conhecido apenas graças a fontes históricas, documentos de arquivo e relatos etnohistóricos pertencentes ao governo e a colonizadores da época. Na ausência de lugares de memória preservados, o seu impacto é principalmente medido através da extensão da marca toponímica, de origem essencialmente malgaxe, deixada nas terras interiores da ilha (Cilaos, Mafate, Salazie…). Este ato de resistência-rutura à escravatura foi uma grande realidade histórica em Bourbon/Reunião até à abolição definitiva em 1848.

A arqueologia começou a interessar-se pelo tema do marronnage desde a década de 1960-1970 nos Estados Unidos e depois desenvolveu-se noutras partes do mundo, permitindo a descoberta e o estudo de vários locais de moradia de escravos marrons no Brasil, nas Caraíbas, no Suriname ou na Maurícia. Na ilha da Reunião, a geomorfologia consiste em antigas caldeiras de vulcões colapsadas, os chamados circos, que proporcionaram um refúgio natural para os marrons, a partir do final do século XVII. Foi com estes escravos fugitivos que começou a primeira povoação destas regiões íngremes e impenetráveis [ÈVE, 2003]. Durante muito tempo documentada apenas por fontes históricas escritas (relatórios de caçadores, atas, interrogatórios, relatos), o marronnage foi recentemente estudado a partir de uma perspetiva nova e tangível graças aos métodos de arqueologia . Uma vez que as fontes históricas demonstraram os seus limites, a arqueologia tornou-se hoje a única forma de documentar o modo de vida dos escravos marrons, tentando procurar e analisar os seus vestígios materiais, que comportam novas informações e, por vezes, revelam factos que a História já não conhece ou que ocultou deliberadamente durante o tempo da escravatura.

Desde o final de 2007, um programa de investigação arqueológica científica tem como objetivo documentar a ocupação das terras altas da Reunião e, em particular, as condições de vida e sobrevivência dos escravos marrons. A criação oficial e regulamentar, em 2010, de um serviço regional de arqueologia no DAC-OI  permitiu iniciar estudos arqueológicos no solo [JACQUOT, 2014]. Esta busca dos arquivos do solo, complementada pelos arquivos escritos amplamente despojados, começou a desvendar de que forma é que os marrons sobreviviam no quotidiano e, recentemente, as primeiras provas materiais da existência do grand marronnage na ilha [DIJOUX,2014].

O «vale secreto»: o primeiro sítio arqueológico de marronnage comprovado na Reunião

Local VALLEE SECRETE. Fotografia Anne-Laure Dijoux,(direitos reservados)

Descoberto fortuitamente por um guia de alta montanha em 1995, o «vale secreto» culmina a mais de 2200 m de altitude no circo de Cilaos. Medindo 450 m de comprimento e 50 m de largura, apresenta um forte desnível e está alojado entre duas vertiginosas paredes rochosas de 50 m de altura. Desconhecido dos documentos de arquivo e das tradições orais, o «vale secreto» abriga um sítio arqueológico excecional. A área arqueológica estende-se por cerca de 350 m², situando-se no centro do vale onde é impossível ser-se visto. A oeste, os vestígios são constituídos por uma plataforma onde há ossos de fauna na superfície e, a leste dela, por duas estruturas construídas.

As pesquisas arqueológicas puseram a descoberto várias camadas, testemunho de ocupações humanas. No centro de cada abrigo, foi desenterrada uma antiga fogueira com muitos restos de fauna, maioritariamente aviária mas também terrestre. No total, foram descobertos mais de mil vestígios de fauna. As análises arqueozoológicas  demonstraram que as refeições habituais eram, em grande parte, compostas por carne de aves juvenis incapazes de voar (Petrel de Barau-Pterodroma baraui) que a carne de porco/javali e cabra/ovelha vinham completar. Uma vez que os Petréis só estavam presentes no vale no início do ano, o local consistia numa escala de caça sazonal, viável, em particular, durante esta temporada. O resto do ano, era um refúgio inexpugnável, onde era difícil viver mais do que alguns dias devido à inexistência de recursos alimentares.

Aliás, os homens deixaram para trás apenas alguns raros vestígios de objetos: um prego, sílices provenientes de pederneiras, um fragmento de um cachimbo em caulino e estilhaços de ferro. A sua presença reflete as atividades domésticas dentro das cabanas: o consumo de substâncias fumáveis e o facto de acender o fogo com pederneiras usadas como percutores. A datação científica do fragmento do cachimbo permitiu datar o seu último aquecimento em 1822 d.C. ± 13 anos, entre 1809 e 1835 d.C., ou seja, em pleno período da escravatura colonial na ilha.

Todos os dados recolhidos pela arqueologia testemunham a frequentação do «vale secreto» como refúgio sazonal para grupos de escravos marrons em busca de liberdade. Este local excecional, primeiro e por enquanto único testemunho arqueológico comprovado do grande marronnage da ilha, ilustra, de forma espetacular, a vontade de sobreviver em condições extremas.

O local «HBC13»: um acampamento temporário na zona do vulcão

Local HBC13. Fotografia Anne-Laure Dijoux,(direitos reservados)

O sítio arqueológico «HBC13» também se eleva a mais de 2200 m de altitude, no sector do Piton de la Fournaise, zona frequentada pelo homem desde o início do século XVIII. Neste local, a ocupação humana ocorreu no interior de um abrigo rochoso com uma largura de 6,80 m e 1,70 m de altura, formado por um átrio aberto à vegetação. O abrigo foi sumariamente protegido por um pequeno muro de pedras secas de 2,80 m de comprimento e 50 cm de altura, apenas na sua parte oriental e disposto de forma sumária mas eficaz.

Os levantamentos arqueológicos realizados em 2013 revelaram uma sucessão de ocupações temporárias representadas pela presença de várias pequenas fogueiras dispostas em diferentes locais no interior do abrigo. Foram descobertos aglomerados de fauna num total de 274 ossos. A sua análise confirma mais uma vez uma dieta baseada principalmente na caça de aves juvenis (Petrel de Barau-Pterodroma baraui), cujas tocas, que hoje desapareceram, estariam localizadas nas cercanias do abrigo, e, em menor medida, no consumo de cabritos selvagens.

Tal como no «vale secreto», foram deixados no abrigo muito poucos objetos: dois fragmentos de sílices provenientes de pederneiras e uma haste de prego em ferro forjado. Este mobiliário da época colonial, muito comum na época, não permite fornecer uma datação precisa das ocupações.

A posição dos ossos no abrigo indica a utilização do fundo muito estreito como zona de descarga, enquanto a área coberta pelo átrio e meio protegida pelo muro baixo foi utilizada para cozinhar, consumir alimentos e aquecimento.

Os dados arqueológicos resultantes das sondagens aliadas ao ambiente topográfico do sítio permitem definir a função do abrigo «HBC13» como acampamento temporário para a exploração dos recursos de carne (e outros) circundantes. Todavia, a cronologia das ocupações, circunscrita num intervalo entre os séculos XVIII e XIX, permanece difícil de determinar devido à ausência de mobiliário passível de ser datado.

A autoria das ocupações humanas no abrigo «HBC13» não foi, ainda, também, determinada, devido à semelhança material entre a ocupação de curta duração por parte de escravos fugitivos, de caçadores de escravos de passagem ou de «Pequenos Brancos» em busca de caça. A probabilidade destes três grupos humanos diversos terem ocupado este abrigo – em momentos diferentes – é bastante concebível; pelo que, esta observação constitui o maior problema da arqueologia do marronnage na Ilha da Reunião.

Bibliografia

CAROTENUTO A., 2006: Les Résistances serviles dans la société coloniale de l’île Bourbon, tese de doutoramento em história sob a direção de C. Dubois, 3 vol., Université Aix-Marseille I.

DIJOUX A.-L., 2014: «L’archéologie du marronnage à l’île de la Réunion : le site de la ‘vallée secrète’ dans le cirque de Cilaos», em DELPUECH A. e JACOB J.-P. (dir.), Arqueologia da escravatura colonial, Atas do colóquio internacional organizado por: INRAP, CPMHE, MCC e MQB em maio de 2012, Paris: La Découverte, pp. 245-260.

ÈVE P., 2003: Les Esclaves de Bourbon, la mer et la montagne, Paris: Karthala, e Saint-Denis-de-La-Réunion : Universidade de La Réunion.

JACQUOT E., 2014: «De la découverte d’un cimetière d’esclaves à la création d’un service d’archéologie à La Réunion», em DELPUECH A. (dir.) e JACOB J.-P. (dir.), Arqueologia da escravatura colonial, Atas do colóquio internacional organizado por: INRAP, CPMHE, MCC e MQB em maio de 2012, Paris: La Découverte, pp. 245-260.

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Notas
[1] Termo grafado indiferentemente «marronnage» ou «maronage» em documentos históricos.
[2] A arqueologia, uma ciência que se centra no passado do homem, tem como objetivo estudar vestígios materiais enterrados no solo, em ambiente subaquático ou submarino.
[3] Direção dos Assuntos Culturais do Oceano Índico.
[4] A arqueozoologia é a disciplina que estuda os ossos da fauna descobertos em sítios arqueológicos.
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