A escravatura

Resistências à escravatura

As mulheres fugitivas na Reunião
Autor
Marie-Ange PAYET

Professora de literatura francesa e francófona


As mulheres fugitivas na Reunião

Cimendef, Mafate, Dimitile, Anchain: todos eles nomes que encontramos na toponímia da ilha da Reunião, e na memória coletiva dos seus habitantes. Estes são os nomes lendários marrons  que simbolizam a busca pela liberdade, a resistência à escravatura. No entanto, os nomes das mulheres que os acompanhavam permaneceram ocultos na sombra desses grandes fugitivos.

Não obstante, os seus nomes flutuam nos picos da ilha: Héva, Raharianne, Marianne, Sarlave, Simangalove. Estas mulheres desempenharam um papel preponderante no marronnage , participando na vida dos acampamentos, na transmissão de tradições, conhecimentos, crenças, ritos e práticas culturais e religiosas. Contribuíram em grande medida para a mestiçagem da ilha e para a descoberta dos circos .

 

Cimandef, Mare à Chicots, Piton d’Anchaing, Plaine d’Affouches. Adolphe Le Roy, desenhador.
Entre 1875 e 1900. Gravura.
Coleção Museu Léon Dierx

Os marrons eram muitas vezes descritos no discurso colonial, erroneamente, como indivíduos que fugiam perpetuamente para os lugares mais remotos e ainda inexplorados da ilha. A história mostra que se enraizavam na ilha, criavam verdadeiras redes e ancoravam-se no território. Organizavam os acampamentos e asseguravam a sua proteção contra os ataques dos destacamentos. Autênticos nómadas, faziam incursões/razias nas plantações da costa para irem recuperar as mulheres que tinham permanecido na escravidão e para se reabastecerem em ferramentas e alimentos.

Reduzido ao estado de escravo na plantação de um senhor, o Cafre/Malgaxe era destituído da sua família, da sua identidade e do seu ambiente. Na sua busca pela liberdade, expressava o desejo e a vontade de reconstituir o seu círculo familiar, de construir uma identidade num novo território. Atualmente, é-nos impossível diferenciar entre lenda e realidade. Tenham estas mulheres fugitivas existido ou não, alguns textos literários, relatos e documentos de arquivo contam-nos a sua existência ao lado dos seus companheiros, reconstituindo a vida de alguns casais de marrons lendários.

Héva – Enchaing

Héva. Gilbert Clain. 2000. Escultura instalada no Praça de Hell-Bourg
fotografia Ibrahim Mulin. Todos os direitos reservados

Não há vestígios deste casal nos documentos de arquivo. Contudo, o Piton Enchaing no circo de Salazie possui o nome do marron que lá vivia. A história deste casal é apresentada como o mito fundador, nas origens do marronnage. Porém, Enchaing parece ter sido esquecido na memória coletiva, assumindo muito menos importância do que o emblemático fugitivo Mafate a quem, infelizmente, a história não atribuiu uma companheira. De acordo com os textos de Auguste Vinson, de C.H. Leal e de Eugène Dayot, Enchaing teria sido um marron pacífico, vivendo em paz e autarcia no seu pico. Conta-se que foi o primeiro escravo fugitivo da ilha, tendo, com Héva, concebido oito filhas que nunca viriam a conhecer os grilhões da escravatura. Essas oito filhas teriam então casado com grandes líderes de escravos fugitivos, estando assim na origem da dinastia dos grandes chefes marrons da ilha. No acampamento onde viviam sós, Héva cuidava da organização da ajoupa , e cozinhava os alimentos que Enchaing respigava nos arredores. Sabe-se que Enchaing era de origem malgaxe, porém a identidade de Héva é desconhecida.

Uma escrava fugitiva com o filho. 1889. Gravura. Em La traite des nègres et la croisade africaine comprenant la Lettre Encyclique de Léon XIII sur l’esclavage, le discours du Cardinal Lavigerie à Paris,
por Alexis M. – G., 2ª edição, Paris, C. Poussielgue, Procure générale, 1889, p. 209.
Coleção Museu Villèle

Marianne/Raharianne – Cimendef/Mafate

Cimendef, marron de origem malgaxe, teria tido por companheira Marianne. No mapa geográfico da ilha da Reunião, o cume que se situa no prolongamento da cadeia montanhosa do Cimendef, no circo de Mafate, apresenta o seu nome. O escritor Boris Gamaleya atribui o nome originário de Madagáscar, Raharianne, à companheira de Cimendef, dando-lhe assim uma identidade malgaxe. Muitas mulheres fugitivas eram chamadas Raharianne ou Marianne, sendo, portanto, difícil encontrar o rasto de Marianne /Rahariane, companheira do marron Cimendef. No texto de C.H. Leal, Marianne é uma guerreira que luta contra os colonos junto ao seu companheiro Cimendef, não desempenhando o mesmo papel que Héva. De acordo com J.M. Mac-Auliffe, Marianne era a companheira de um grande chefe marron chamado Fanga cujo acampamento se localizava em Cilaos, tendo sido morta pelo caçador de escravos, Edouard Robert. Num documento de arquivo datado de 1751, François Mussard, outro caçador de escravos, mata Raharianne, a bem-amada do chefe Maffack (Mafate) , na Rivière des Galets. Assim, Mafate teria tido por companheira uma certa Raharianne. Mafate, marron de origem malgaxe, era um poderoso feiticeiro que conhecia bem os franceses desde a colonização francesa em Madagáscar. Evocava sistematicamente os sikidis  para indagar sobre o futuro do grupo de marrons.

Família Maroon – Cimendef e Marianne. Marco Ah-Kiem. Escultura, Saint-Denis – Barachois.
Fotografia de Ibrahim Mulin. Todos os direitos reservados

Simangalove – Matouté

Simangalove, de acordo com o relato de C.H. Leal, era a companheira do chefe Matouté, vivendo numa caverna profunda em Trois Salazes no circo de Cilaos. Descrita como guerreira e conselheira, era a líder do bando de marrons que lutava contra o poder colonial.

Sarlave – Laverdure

O grande rei Laverdure e a sua rainha Sarlave eram temidos pelos destacamentos, sendo constantemente perseguidos por eles. O seu acampamento, Ilet Marron, situava-se no circo de Cilaos. Sarlave teria sido morto pelo caçador de escravos François Mussard em 1752 . A memória coletiva não reteve o nome deste casal de marrons. Em contrapartida, o nome do chefe marron Dimitile, que se localiza geograficamente perto do campo de Sarlave e Laverdure, permaneceu ancorado na imaginação dos habitantes da Reunião.

Sarlave, a Rainha. Detalhe da estela instalada no Campo Dimitil – Entre-Deux.
Fotografia de Ibrahim Mulin. Todos os direitos reservados

Adzire

Pode-se considerar esta mulher como fugitiva? Foi acusada de comercializar com os marrons. Firmin Lacpatia baseou-se em relatórios da polícia escritos em 1846  para contar a sua história no seu livro «Adzire ou le prestige de la nuit». Esta personagem feminina mostra que a mulher escrava podia ter um duplo estatuto na sociedade colonial da Reunião: ser escrava nas plantações dos colonos e negociar com os marrons.

Os marrons solitários

Muitos dos grandes chefes marrons marcaram a toponímia da ilha, tais como Dimitile, Sémitave, Bâle, Pître cujo nome é encontrado nos relatos de destacamentos, sem que a história lhes tenha atribuído companheiras.

Quando os campos de marrons eram atacados por caçadores de escravos, na maioria das vezes as mulheres eram capturadas porque representavam uma importante fonte de informação para os colonos sobre a composição dos acampamentos, a existência de outros acampamentos, etc.; ao passo que os homens eram frequentemente assassinados, cortando-lhes a mão direita ou a cabeça como prova, depois de terem sido batizados. Os caçadores de escravos recebiam uma recompensa. As mãos e as cabeças cortadas eram então expostas no «lugar habitual»  como aviso e dissuasão para os escravos que ponderassem fugir da plantação.

Tal como no caso da colonização, a história fez do marronnage, da busca pela liberdade, um acontecimento essencialmente masculino. Poder-se-ia, talvez, pensar que, ao recuperar a sua liberdade a fim de constituir uma família nas montanhas inacessíveis da ilha, o escravo desejasse proteger o elemento feminino do mundo colonial, tornando-o invisível. Isto explicaria porque é que o nome das mulheres fugitivas não aparece na toponímia da ilha. Consequentemente, podemos sugerir que, nas práticas e costumes dos marrons, fossem eles de origem malgaxe ou africana, apenas os homens designavam o território com o seu nome ou uma palavra relacionada com a sua própria identidade.

Nas histórias e documentos de arquivo relativos ao marronnage, não há dúvida de que as escravas femininas eram uma fonte de motivação para a reconquista da liberdade, incitando, preparando e ajudando os escravos a evadir-se da plantação. E, a miúde, juntando-se a eles. Deste modo, elas participavam na sobrevivência das culturas, crenças, práticas religiosas e ritos da sua terra natal; das músicas, práticas culinárias e conhecimento da natureza envolvente. Principalmente africanas e malgaxes, as mulheres fugitivas estão na origem da mestiçagem nos circos da ilha.

As lendárias figuras femininas locais de Madame Desbassayns e de Grandmèr’ Kalle  bem como as curandeiras ou herboristas da Reunião, tal como a Madame Visnelda, herdaram características atribuídas às escravas fugitivas. Graças ao conhecimento que possuem das plantas locais, as curandeiras acalmam as doenças do corpo e da mente. Granmèr’ Kalle possui o poder sobre a vida e a morte e seu espírito ronda as montanhas da ilha. A alma da Madame Desbassyns arde eternamente no Piton de la Fournaise (o vulcão).

Escravo, senhor ou marron, estas personagens da história misturam-se e fundem-se nos mitos. O marronnage é certamente uma busca pela liberdade, mas também e acima de tudo uma verdadeira história de amor dos homens negros pelas suas esposas.

Bibliografia

Referências:

Dayot, Eugene. Bourbon pitoresco; poemas. Nouvelle imprimerie Dionysienne: Saint-Denis, 1977.

Gamaléya, Boris. Vali pour une reine morte. Conselho regional da Reunião, 2ª edição, 1986.

Lacpatia, Firmin. Adzire ou le prestige de la nuit. Edições Orphie: Paris, 1988.

Leal, Charles Henry. Uma viagem à Reunião. Companhia Geral de Impressão a Vapor, 1878.

MacAuliffe, J.M. A captura de Cilaos por François Mussard em Bourbon pittoresque ; Cilaos pittoresque et Thermale : Guide médical des eaux thermales. Azalées editons: Saint-Denis, 1996.

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Notas
[1] Um marron era um escravo fugitivo. (N. da T.)
[2] O marronnage define-se como a fuga de escravos para as montanhas. (N. da T.)
[3] Um circo é uma depressão rochosa, em forma de bacia, de paredes com grande inclinação, situada a elevada altitude mas abaixo das cristas superiores das montanhas. (N. da T.)
[4] Documento de arquivo: ADR Cº994, 24 de setembro de 1751
[5] Sikidis: pedras mágicas da tradição malgaxe (N. da T.)
[6] Documentos de arquivo: ADR Cº965, 11 de outubro de 1743 / ADR Cº995, 30 de agosto de 1752 / Cº995, 28 de dezembro de 1752 / ADR 996 Cº996, 6 de fevereiro de 1753.
[7] Documento de Arquivo: ADR 73M6
[8] Alguns historiadores situam o «lugar habitual» na praça da igreja ou sob o tamarindo do bairro dos escravos onde ocorriam os «kabary».
[9] Madame Desbassayns foi uma grande proprietária da ilha e Grandmèr’ Kalle uma personagem de lenda aparentada a uma bruxa má. (N. da T.)
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