Abolição da escravatura

Após a abolição

O trabalho contratado Chinês na Reunião
Autor
Edith WONG HEE KAM

Doutora em História
Investigadora associada do C.R.E.S.O.I.
(Universidade da Reunião)


O trabalho contratado Chinês na Reunião

Em 19 de outubro de 1901, um navio a vapor alemão, o Érica, entrou no porto de Pointe des Galets. A bordo estava a última leva de chineses contratados, 808 homens que foram recrutados na província de Fujian, no sul da China. Este seria o episódio final de uma história que havia começado 57 anos antes com o primeiro envio de trabalhadores do mesmo tipo.

A história da contratação chinesa comporta duas fases: a primeira arranca em meados do século XIX, a segunda no início do século XX.

Primeira fase da contratação chinesa: 1844-1860

As circunstâncias

O navio Suffren ancorou em Bourbon a 13 de abril de 1844 com 54 chineses a bordo que tinham sido recrutados em Pulo−Pinang na Malásia. Eram aguardados enquanto salvadores da agricultura local. De facto, a ilha passava por um desenvolvimento económico desde 1815, aquando da introdução da produção de açúcar – que requeria uma grande quantidade de trabalhadores –, sendo que na véspera da Abolição da Escravatura (1848), os proprietários e plantadores de Bourbon resolveram procurar mão de obra. Tendo em conta a abertura forçada da China aos estrangeiros, eles decidiram substituir os trabalhadores indianos pelos chineses, enviando vários pedidos de recrutamento ao governador. O Conselho Colonial aceitou o princípio da entrada de coolies  chineses, tendo, para tal, o governador Bazoche assinado um decreto em 10 de novembro de 1843 . Por conseguinte, foi decidido trazer «até mil trabalhadores chineses para a ilha».

Pormenor de Trabalhadores livres nas ilhas Mascarenhas. G. Bos. Século XIX. Cromolitografia.
Coleção Museu Villèle

A esta primeira leva seguir-se-iam outras, sendo que os navios que traziam os chineses contratados sucederam-se uns aos outros durante este ano de 1844. No dia 5 de julho, o La Sarcelle chegou de Singapura com 69 chineses contratados a
bordo , dos quais 59 foram enviados para o Atelier Colonial, onde foram «destacados para as obras de retenção do rio des Marsouins, o resto para os trabalhos de proteção do rio Saint-Denis» . Os restantes dez trabalhariam na sericultura para o Sr. Perrichon em Salazie.

Pormenor de Trabalhadores livres nas ilhas Mascarenhas. G. Bos. Século XIX. Cromolitografia.
Coleção Museu Villèle

Assim, os contingentes seguem-se uns aos outros, trazendo sobretudo pessoas da região de Amoy. Mas esta emigração abrandaria. A 2 de julho de 1846, o governador Graeb assinou um decreto com vista a «suspender, exceto para operações em curso, qualquer introdução adicional de contratados chineses» . A colónia contava então com 458 trabalhadores deste tipo . O valor inicialmente previsto de mil não foi atingido devido aos problemas encontrados.

Desilusões recíprocas

No início da década de 1840, a imprensa local evocava os contratados chineses em termos laudativos. Neste contexto, em 1843, La Feuille hebdomadaire de l’Ile Bourbon via-os como «trabalhadores de elite, nativos da Ásia», alegando que «nenhuma raça poderia rivalizar com eles».

Alguns ficariam rapidamente desiludidos e queixar-se-iam oficialmente. Neste sentido, Julien Gillot l’Etang enviou uma carta ao Conselho de Bourbon em 6 de setembro de 1844 para requerer o repatriamento de dois «sujeitos maus, preguiçosos, incapazes de qualquer serviço» e a quem tinha mandado prender enquanto se aguardava a sua partida . Em 28 de outubro de 1844, um inspetor da polícia escreveu uma carta ao diretor do Interior, ecoando as recriminações dos contratados que tinham apresentado queixa contra o seu empregador . A situação agravou-se ao ponto de, em 2 de julho de 1846, o Conselho ter percebido que «afluíam queixas de todos os lados relativamente aos chineses. Em regra geral são maus trabalhadores. Povoam as prisões e os ateliers de disciplina». No ano seguinte, a situação continuou a agravar-se.

Os proprietários sentiam uma grande desilusão: o recrutamento por contrato era muito mais caro do que estava previsto. Esta era uma das conclusões das atas do Conselho Colonial que evocava preços de «uma exorbitância desencorajadora». Além disso, estes recém-chegados não lhes forneceram a ajuda tão esperada, sendo muito pouco rentáveis: «Eles trabalham lentamente e têm um caráter violento», escreveu o Sr. Féry, um empregador de Sainte-Suzanne em 1849. Esta frase resume todas as queixas dos plantadores. A incapacidade física reflete-se na descrição de um artigo em La Feuille Hebdomadaire de l’Ile Bourbon que os descreve como «fracos, enfezados e débeis».

Para além do seu desapontamento, os patrões não escondem a sua preocupação relativamente à violência dos contratados chineses que não hesitavam em tornar-se agressivos, o que é uma novidade para estes proprietários habituados a uma maior obediência e passividade. Gabriel de Kervéguen escreveu ao Diretor do Interior em 1848:

Hoje, a insubordinação está no seu auge: ameaçam os administradores, matam-nos e ateiam fogo a tudo sempre que surge a oportunidade (…) No meu estabelecimento em Les Casernes, tentaram assassinar o Sr. Ernest Lallemand, um empregado meu; um Chinês, empregado na bateria, agarrou um dos meus negros, para o levar para uma caldeira cheia de xarope a ferver; foi impedido de o fazer por outros negros da bateria, etc… .

Quanto aos contratados chineses, estavam exasperados pelo tratamento que lhes era reservado. No dia 28 de outubro de 1844, um inspetor da polícia enviou uma carta ao diretor do Interior, transmitindo as recriminações dos trabalhadores contratados que tinham vindo apresentar uma queixa contra o seu empregador  :

Onze chineses do Sr. Lacour que vivem em Saint-André vieram queixar-se de que o contrato que tinham assinado com este proprietário não está a ser cumprido… -1º) As rações alimentares não são respeitadas -2°) O administrador espanca-os -3º) Começam o trabalho às sete da manhã, terminando apenas à uma da noite
-4°) Não recebem os cuidados necessários quando estão doentes, sendo que um dos seus, Assiov, faleceu ontem à noite»; acrescentando: Estas pessoas parecem-me cheias de boa vontade e cumprem os seus compromissos religiosamente.

Rações alimentares insuficientes, horários excessivos, agressões e ferimentos, estão entre os temas habituais de descontentamento aos quais acresciam as reivindicações relativas ao pagamento de salários: assim, os trabalhadores chineses do Sr. Périchon exigem, em 1847, os seus salários não pagos.

Em 1962, jornalistas vindos de Taiwan levaram a cabo uma investigação aprofundada publicada em 1966 com o título Liuniwangdao Huaqiaozhi 留尼旺島華僑志 «Monografia sobre os chineses da diáspora na ilha da Reunião». Apresentando o ponto de vista chinês, os autores evocam este período nos seguintes termos: «Quando desembarcaram na ilha, foram obrigados a realizar dois tipos de trabalho, a abertura de estradas e a criação de bichos-da-seda. Pouco tempo depois, um pequeno grupo recusou tais condições, fugindo para as montanhas».

As consequências

Estava-se a assistir à marginalização de muitas pessoas contratadas, que caíam na mendicidade ou na vagabundagem, ou até na delinquência. Os trabalhadores da Brigada dos Chineses ilustraram este facto. No Conselho Colonial de 17 de fevereiro de 1846, um dos membros, Patu de Rosemont, declarou que certo número andava pelas ruas e «vão para as propriedades em bandos, roubando canas-de-açúcar e tudo o que podem levar; e quando os guardas vêm afugentá-los, são insultados e repelidos com pedras» . Num tal contexto, gera-se logicamente o desenvolvimento da delinquência. Assim, muitos chineses encontraram-se perante os tribunais para serem julgados pelos seus delitos, de modo que,
«de 27 de outubro de 1847 a 26 de janeiro de 1848, a justiça julgará 38 chineses por atos criminosos, incêndios, roubos e assassinatos» .

As expulsões constituiriam um meio clássico usado pela sociedade colonial para solucionar estes problemas. Em setembro de 1844 foi apresentado um pedido por Julien Gillot l’Etang com vista ao repatriamento de dois contratados. Houve uma profusão deste tipo de requerimento. Em novembro de 1845, o Conselho Privado iniciou um debate sobre o reenvio dos trabalhadores da Brigada dos Chineses: o engenheiro da instituição Ponts et Chaussées exigiu a demissão de quinze deles, «gente que não serve para nada». Em 6 de março de 1847, foi assinado o decreto do governador formalizando a expulsão de trinta deles para Singapura . Outras partidas tiveram lugar, sem contudo assumirem tais formas coercivas.

Assiste-se assim à suspensão da contratação agrícola de mão de obra chinesa: durante muito tempo os plantadores recusaram a eventualidade de recorrer a ela, sendo necessário esperar até ao final do século para que as importações de coolies chineses fossem retomadas. Além disso, tinha-se forjado uma imagem negativa dos chineses, marcada tanto pelo desapontamento dos agricultores como pelo medo gerado pela sua violência inesperada.

A longo prazo, assistiu-se aos primeiros passos do comércio chinês. Os contratados lançaram-se no comércio ambulante e na venda de produtos alimentares. Os contratados de Bourbon emularam a experiência dos das ilhas Maurícias, sobre os quais foi dito em 1843: «… Disseram-me que na Maurícia, a maioria dos chineses, assim contratados, tinha abandonado o cultivo da cana-de-açúcar. Alguns tornaram-se vendedores ambulantes, uma profissão que lhes proporcionava mais benefícios. Outros, que porventura possuíam mais fundos, teriam estabelecido pequenas lojas» . Certains de ceux qui restent à l’expiration de leur contrat s’intéressent à la vente d’aliments et de boissons à proximité des usines. C’est ce que révèle le compte-rendu d’une séance du Conseil Privé de mars 1858 .

Chane Yong, 7 de novembro de 1900, ajudante. Em Registo do imposto turístico.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião
Chane Tu, 30 de junho de 1897, gerente. Em Registo do imposto turístico.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião

A Maurícia tornou-se um refúgio para aqueles que não conseguiam integrar-se em Bourbon e um polo de atração para aqueles que pretendiam ganhar algum dinheiro antes de regressarem à Ásia. Por outro lado, os contratados que optaram por ficar na ilha tornaram-se os pioneiros de uma diáspora estável.

Segunda tentativa de contratação chinesa:
1901 -1908

Esta tentativa diz respeito aos 808 alistados que chegaram em outubro à Pointe-des-Galets a bordo do navio L’Erica que havia zarpado em 21 de setembro de 1901 de Fuzhou. Aparentemente não houve outras chegadas desde então.

Documento de identificação de um trabalhador contratado. 1901.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião
Documento de identificação de um trabalhador contratado. 1901.
Coleção Arquivos departamentais da Reunião

Com a retomada da imigração de trabalhadores contratados chineses repetir-se-ia uma longa série de conflitos resultantes da revolta destes homens. Entre 1901, a data de chegada, e 1907, que marcou o regresso de muitos à China, nem um ano passaria sem que houvesse um movimento de revolta. O primeiro ocorreu em dezembro de 1901, envolvendo os incidentes ocorridos nas propriedades de Colson e Kervéguen em Saint-Louis. Numa carta datada de 11 de dezembro de 1901, o brigadeiro Dufossey informou o seu chefe de esquadrão da polícia de Saint-Denis do seguinte:

Hoje, dia onze deste mês, por volta da uma hora da noite, fui avisado por um funcionário do Sr. de Kervéguen, que os imigrantes chineses, recentemente chegados à colónia, se recusaram terminantemente a trabalhar. Fui imediatamente acompanhado por um gendarme ao referido estabelecimento localizado em La Rivière (Saint−Louis) (…). Dos quarenta imigrantes empregados pelo estabelecimento, metade tinha declarado, de manhã, estar doente com o único propósito de ausentar-se do trabalho. A outra metade começou o dia de trabalho da melhor forma possível, se bem que resmungando, mas quando chegou a hora da refeição, avançaram o pretexto de que não tinham comida suficiente, e resolveram, apesar das repetidas insistências dos empregados, não continuar a sua tarefa à tarde .

Também na zona leste ocorreram problemas semelhantes a 8 de janeiro de 1902: um motim eclodiu nos estabelecimentos de Bois-Rouge . A situação agravou-se com o tempo . Em 11 de junho de 1905, uma nova queixa foi apresentada por treze contratados pelos estabelecimentos Bellier . Em 1906, o descontentamento generalizara-se: a leste, organizavam-se movimentos, sendo que os chineses pretendiam marchar sobre a capital. Durante o mesmo ano, a agitação crescente propagou-se para o sul. Em dezembro, a propriedade dos Kervéguen em Saint-Louis ainda era palco de motins. Ali, empregavam há três anos antigos contratados da propriedade Chabrier. Quando o contrato expirou em setembro de 1906, os contratados reivindicaram ao seu empregador aquilo que lhes era devido. O Sr. de Kervéguen informou-os de que lhe deviam um número exorbitante de dias de trabalho! Revoltados com esta forma de proceder, enviaram a 25 de setembro de 1906 uma delegação de 25 homens ao governador de Saint-Denis para explicar o seu caso e pedir proteção. Obtiveram promessas e garantias por parte do conselho para que voltassem ao trabalho, regressando a St. Louis por caminho-de-ferro. Nenhuma promessa seria cumprida, tendo mesmo sido sujeitos a sanções aquando do seu regresso regressarem. Um contabilista dos Kervéguen mandou bater-lhes. Alguns ficaram feridos, outros foram apresentados ao juíz da paz de Saint-Pierre e enviados para a prisão da cidade. A 18 de dezembro, 25 contratados recusaram-se a ir trabalhar. Em 14 de janeiro de 1907, o «representante dos chineses» Foctiev foi obrigado a escrever ao governador a fim de obter a libertação de «21 chineses que foram presos em Saint−Pierre por terem deixado o estabelecimento sem autorização para irem apresentar as reivindicações ao Síndico» . Uma carta coletiva datada de 9 de fevereiro de 1907 foi enviada ao governador, na qual constavam as queixas dos reclusos, bem como a explicação da sua situação . Uma carta coletiva datada de 9 de fevereiro de 1907 foi enviada ao governador, na qual constavam as queixas dos reclusos, bem como a explicação da sua situação .

Problemas relativos a salários, maus tratos e condições de trabalho: as razões de recriminação dos trabalhadores contratados estavam ligadas às regras ferozes da relação dominante/dominado que regiam o mundo da mão de obra estrangeira na sociedade de Plantação.

Notas
[1] Trabalhador chinês ou hindu (N. da T.)
[2] ANOM, D 43 C 45 17, Decreto de 10 de novembro de 1843.
[3] ANOM, C432 d 4601, Correspondência.
[4] ANOM, C 432 d 4603, Imigração Chinesa, Atelier Colonial.
[5] ANOM, C 432 4604, Recrutamento de mão de obra
[6] D. Durand, Les Chinois de La Réunion, Australe Editions, Capetown, 1981, p. 34.
[7] ADR 16 K 26, Conselho Privado de Bourbon de 6 de setembro de 1844.
[8] ADR 168 M 2 12 M Imigração.
[9] ADR, 166 M 1, Carta de Gabriel de K/veguen ao diretor do Interior, 16 de fevereiro de 1848.
[10] ADR 168 M 2 12 M Imigração.
[11] ADR, N, Conselho Colonial, 17 de fevereiro de 1846, pp. 65-66.
[12] D. Durand, op. cit., p. 36.
[13] ANOM, 432 d 4607 Organização do Protetorado de Imigrantes, Conselho Privado de Bourbon de 6 de março de 1846.
[14] ADR, Relatório do Sr. Favin l'Evêque, capitão de corveta, comandante do navio Heroína, 17 de junho de 1843.
[15] ANOM C 383 d 3350, Réglementation, Conseil privé de Bourbon.
[16] ADR, 12 M, 168 M2, Carta de 11 de dezembro de 1901.
[17] ADR, 12 M 168 M2, Carta de 8 de janeiro de 1902.
[18] ADR, gabinete do prefeito, pagamento 2111-63-1-498, Carta de 8 de junho de 1904 do protetor dos imigrantes ao procurador-geral de Saint-Denis.
[19] ADR, idem, carta de 11 de junho de 1905. Resposta: Caso encerrado..
[20] ADR, 12 M 165 M 5, Carta do representante do chinês Foctiev ao governador da Reunião de 14 de janeiro de 1907.
[21] ADR, carta coletiva de 9 de fevereiro de 1907 ao governador da Reunião.
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Edith WONG HEE KAM

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